Blackout.

40 2 8
                                    

  Ramona encarava a torrencial chuva que se derramava sobre Seattle. Seu turno havia acabado a pouco, algo que pareceu uma eternidade, ainda mais quando os pensamentos estavam no maldito Cantrell. O loiro gostoso a tinha deixado afetada, não conseguindo se concentrar no trabalho, errando pedidos simples e quase estragando tudo. Bufou, ciente de que postergaria sua chegada um tanto mais, pois, não daria para enfrentar a tempestade sozinha, e não era nem por se molhar, mas pela intensidade e pelos raios e trovões que rasgavam o céu noturno. O baixo ventre protestava, ansioso, não podendo o culpar, já que somente lembrar do que acontecera no camarim horas antes, a deixava molhada. As mãos grandes e precisas, os beijos que tiravam a sanidade, o... bem, o querido Jerryzinho roçando em si, duro, grande e tão desejoso quanto ela mesma. Estava perdida. Sabia que não era somente carnal, somente superficial a vontade que tinha do vizinho, havia algo mais profundo, maior e que se alastrava como um vírus, um vírus que não tinha cura. Era isso. Estava infectada, afetada pelo que Jerry representava. É claro que aquilo lhe assustava, no entanto, a sobriedade era uma de suas qualidades notáveis, sobriedade de discernir os sentimentos, mesmo que por vezes teimasse em negar, no fim das contas, a lucidez exacerbada ditava a última palavra, a obrigando admitir derrota e suspirar resignada, coisa que fazia naquele exato momento.

  - Tá fazendo o que aí, Mona? – A voz de Mary chegou aos ouvidos da ruiva, que saiu dos próprios devaneios e a fitou intensamente, escolhendo o que responder.

  - Dando um tempo até a chuva passar. – Ela deu de ombros, sorrindo fraco.

  - Venha, te dou uma carona. – Mary ofereceu, sem chances de recusa. Logo a dupla atravessava a rua correndo, fugindo das gotas geladas e afiadas que a atingiam. Entraram no veículo da loira, que ligou o aquecedor e sem demora deu partida, vencendo os faróis e esquinas do centro. - Tá meio dispersa. - Comentou, o tom usado uma mistura de preocupação e malícia.

  - Muita coisa na cabeça. - Foi a resposta da outra, soando meio evasiva.

  - Essa “coisa” por acaso seria um certo músico gostoso? - A mais velha provocou, soltando um risinho vitorioso ao observar as reações da amiga.

  - Está tão óbvio? - Ramona deixou os ombros caírem, cansada em manter a pose inabalável.

  - Sabe, o ajudei a chegar até seu camarim. - A loira confessou, rindo ainda mais com as expressões da jovem. - Trombei com ele no meio do corredor, estava ansioso em te encontrar. Somente apontei a direção certa. - Explicou, como se não fosse nada demais, enquanto conduzia concentrada por uma longa avenida.

  - Obrigada. - Mona agradeceu, sabendo que a amiga entenderia a introspecção, também não querendo a atrapalhar durante o trajeto, que se mostrava difícil por conta do aguaceiro, deixando os vidros embaçados e os limpadores de para-brisas sobrecarregados.

  Neste cenário desafiador um trovão acabou por rasgar as nuvens, tão potente que era provável ter iluminado todo o centro e um pouco mais. Como desgraça pouca é bobagem, o mais alto e aterrorizante trovão irrompeu instantes depois, arrancando palavrões entusiasmados e muito criativos das mulheres e provavelmente, de quem fora atingido pelo som. Como um combo de azar, tudo caíra na mais intrépida escuridão, exceto pelas luzes dos faróis alheios, que se tornaram pontos de referência na madrugada peculiar. Assim, mesmo que ainda mais lentas e cautelosas, a dupla continuou caminho até o prédio de Ramona, inocentes do que ocorria por lá.

  Do outro lado da moeda, um Jerry assistia a monção cair através das janelas do apartamento, as gotas batendo nos vidros o acalentando, auxiliando a pensar. Ramona era Baby Jenks. A afirmação martelava na mente, o fazendo se sentir um pouco mais burro e relapso a cada segundo. Como não vira a verdade antes? Bem, não se preocupou em ligar os pontos, em raciocinar o mínimo que fosse. Era por isso que não se permitia estar bravo ou ao menos sentir-se traído, merecia ter sido feito de trouxa, até porque era um idiota completo. Quanto mais pensava sobre o assunto, pior ficava. Fizera papel de bobo, não sabendo lidar com o ciúme ou com os sentimentos que o assolavam. Ramona havia ganhado aquele jogo, munida do jeito engraçado e atrevido, o sorriso que iluminava tudo ao redor, o olhar esperto e ao mesmo tempo afetuoso... Não tinha mais jeito, estava completo e inteiramente apaixonado, o coração exposto para que ela usasse como quisesse. Estranho voltar a tal lugar, mesmo que em posição diferente. Uma vez alguém o amou de modo incondicional, porém, estragara tudo, talvez por ser imaturo ou por não estar pronto ou por não corresponder verdadeiramente o que lhe fora oferecido. Agora estava mais do que preparado, disposto a enfrentar e lutar pela ruiva, não a magoando ou errando, não novamente.

  Continuava a devanear sobre as próprias questões quando viu o céu se iluminar e logo após um enorme estrondo inundar o ambiente, para então tudo se tornar breu. Xingou alto, afetado pelo susto e demorando longos instantes até mover-se e ir procurar por lanternas e velas, batendo o dedinho do pé direito no processo. Estampava uma careta, rabugento, vasculhando as gavetas e nada, nada dos objetos. Bufou, consciente de que estavam no outro apartamento, esquecendo de trazê-los consigo na mudança. Cogitou permanecer no escuro, entretanto, sabia que era necessário iluminar a casa, o latejar do dedinho lembrando-o a cada segundo. Resignado ao que tinha de fazer, pegou o chaveiro e rumou até o corredor, deixando a porta encostada, já que seria algo rápido. Andou alguns passos, parando frente ao pedaço de madeira escura e colocando a antiga chave na tranca, para então abrir passagem e entrar no local empoeirado. Espirrou umas duas vezes, enquanto seguia até a cozinha e certeiro abria o armário, sorrindo vitorioso como uma criança que enfrentara a mais desafiadora aventura, ou no caso, o mais desafiador blackout. Pegou o que almejava, guardando no bolso da calça o pacote com as velas e ligando a lanterna, suspirando aliviado em poder enxergar as coisas de novo.

  Partículas de poeira dançavam sob o facho amarelado, inocentes do que estaria por vir. Jerry de uma olhadela no buraco acima de sua cabeça, rindo internamente das lembranças de um passado recente. Deu de ombros, recomeçando sua volta, despreocupado, quase chagando a saída, quando uma corrente de ar inesperada se apresentou e com um baque seco, fechou a porta. Um grito assustado fora a reação do guitarrista, que estancou no lugar, aguardando a alma voltar para o corpo. Respirou fundo, sacudindo a cabeça e retomando o controle das próprias ações, racionalizando o ocorrido e agindo para repará-lo. Virou a maçaneta, não obtendo. Tateou os bolsos, tirando as chaves de lá e enfiando no pequeno buraco de metal. Nada. Não importava o quanto girasse ou recolocasse, a porta não dava o mínimo sinal de que abriria. Deu algumas ombradas, mas de nada adiantou, apenas o deixando com mais dor. Girou nos calcanhares, iluminando todo o cômodo a procura de auxílio. Botou os olhos na escada encostada num dos cantos, uma ideia perigosa e fadada ao fracasso vindo a mente. Sem ponderar muito foi até lá e arrastou a bugiganga para debaixo do rombo, travando o melhor que pôde e subindo um degrau por vez, inseguro do que fazia. O metal rangia sob os pés, trazendo sensações não muito agradáveis, mas que tentava ignorar, dando prosseguimento a “missão”. Logo avistou o lar de Ramona, o sofá meio distante, a mesinha de centro com coisas em cima, a tv empoeirada atrás de si, o ambiente que mesmo a luz fraca era um reflexo dela. Até a porra do cheiro de cigarros e perfume ainda se mantinha, após tanto tempo sem habitação. Lançou uma olhadela para baixo, vendo as colunas de madeira que sustentavam o teto/chão, calculando o melhor lugar para se apoiar e dar impulso. Deixou a lanterna de lado, de modo a iluminar o pequeno espaço que o circundava, espalmando as mãos na beirada da abertura e se impulsionando para frente, na vã tentativa de levar o corpo até onde era seguro.

  Aqui, podemos dizer que mesmo válida, a ação de Fulton não teve êxito, pois, quando seu peso pressionou a estrutura, o barulho de algo se rompendo fez-se presente, seguido de muita poeira, exclamações de baixo calão, gemidos de dor e um constrangimento interno intenso, junto ao alívio e apreensão de continuar sozinho.

  - Cacete... - O loiro resmungou entre uma crise de tosse e outra, ainda estirado ao chão, dolorido e indignado. Suspirou, uma careta cortando o rosto, o ato simples se mostrando dolorido.

  Ficou ali, imóvel e contemplativo, bronqueando-se em dar chance ao azar, logo ele, o ser mais fodido de todos.

Something's Gotta Turn Out Right Onde histórias criam vida. Descubra agora