DIAS DEPOIS...
- Jerry, acorde. – Ramona chamou o amigo, que se encontrava adormecido no sofá. – Vai ficar todo dolorido. – Comentou consigo mesma, ajeitando o corpo dele o melhor que pôde. Lhe tirou as botas e puxou o cobertor até quase os ombros, tirando os fios dourados do rosto sereno. – O maldito é lindo até dormindo... – Pensou alto, mesmo que não passasse de um sussurro. Permaneceu admirando-o, sem conseguir sair do lugar. Era sempre assim, desde que o encontrara pela primeira vez desacordado. Tocou o nariz com delicadeza, contornando e parando na ponta arrebitada. Sorriu genuinamente, se aproximando e depositando um beijo de boa-noite entre as sobrancelhas claras. – Durma bem, Jer. – Desejou, antes de se afastar e ir pro quarto.
Foi somente com o bater da porta que Cantrell ousou abrir os olhos. Se sentia culpado por estar enganando a ruiva, no entanto, não resistia a atenção que lhe era entregue. Todo aquele lado carinhoso de Ramona o estava deixando intrigado, ainda mais quando só era apresentado nestes específicos momentos. Era como se a jovem tivesse receio de se abrir completamente, de mostrar tal fragilidade. Uma hora teria de admitir a mentira, só que não por agora. Continuaria aproveitando os afagos e os beijos inocentes. Um cuidado que não recebia desde... desde que sua mãe e avó morreram. Não, mentira. Havia outra pessoa que o enchia de afeto, mas ela não voltaria mais. Suspirou, mudando a posição no estofado e sentindo o corpo protestar. Deixou que as pálpebras caíssem até que o nada aparecesse e o levasse para a imensidão dos sonhos, a testa formigando onde os lábios gentis tocaram.
Dentro do outro cômodo, Mona retirava os sapatos e ponderava sobre suas atitudes. Tornou-se um ritual chegar do trabalho e se deparar com o vizinho. Engraçado como as pessoas se acostumavam facilmente com algo, com alguém. Havia um mês de convivência com Jerry, um mês desde o buraco no teto e se perguntassem, poderia responder que o conhecia há anos, mesmo que não soubesse nada dele, quem eram seus pais ou como fora sua infância. Se tinha irmãos e irmãs, se quebrou algum osso ou passou vergonha na frente de uma paixonite. Coisas que estreitavam as relações humanas, que agregavam na montagem que se faz do próximo. Percebia que a cada dia baixava mais as próprias defesas, permitindo que o vizinho visse outras faces que lhe pertenciam, não só a máscara do deboche e humor ácido. Se constituía de camadas e começava a ansiar que Cantrell as desvendasse. Suspirou, pegando o pijama na cômoda, saindo novamente para a sala e lançando um último olhar ao guitarrista, que ressonava baixo em total dormência. Seguiu para o banheiro, onde tomaria um merecido banho e cairia no colchão macio, ignorando a vontade de compartilhá-lo.
NA MANHÃ SEGUINTE...
- Porra, Jerry! Sério?! - Ramona gritou do quarto, ranzinza.
- São dez horas, posso fazer o barulho que quiser! - O loiro respondeu, cínico. Tinha um sorriso divertido nos lábios enquanto dedilhava sua guitarra, o barulho um tanto quanto alto.
- Bastardo! - Monda rebateu, antes de dar-se por vencida e despertar completamente. Não ligou para a aparência amarrotada, apenas ajeitando os cabelos num rabo de cavalo e abrindo a porta com certa violência. Parou sob o batente, encarando o vizinho por longos segundos e imaginando maneiras de desmembrar o corpo delgado. - Só queria dormir mais um pouco... - Resmungou, deixando os ombros caírem e coçando os olhos com força. - É minha folga.
- Ok, parei. - Cantrell desligou o amplificador e desplugou a guitarra, guardando-a num canto. - Esqueci desse detalhe, sinto muito. - Sorriu sem jeito, indo até a cozinha, enchendo uma xícara com chocolate quente e oferecendo para a amiga, que aceitou agradecida.
- Isso tá maravilhoso. - A ruiva elogiou, sentando-se no sofá e ligando a TV.
- Marshmallows? - O músico indagou, se inclinando no encosto do estofado e estendendo o pacote.
- São dos pequenininhos! - Ela tinha um sorriso aberto, enfiando a mão no saco, tirando alguns docinhos e os jogando com cuidado na caneca. - Tá perdoado. - Decretou, tomando um gole generoso da bebida e pescando os pedaços macios no processo.
- Me sinto aliviado. - Jerry revirou os olhos teatralmente, assistindo as reações da jovem. Não sabia dizer, mas aquilo lhe deixava alegre, como se tivesse ganho o dia só por vê-la feliz. - Minha mãe fazia chocolate quente com esses marshmallows. Meus irmãos e eu adorávamos. - Contou, saudosista.
- A mesma coisa comigo. - A ruiva afirmou, virando o rosto e focando os orbes azuis. – Minhas irmãs e eu enchíamos o cú disso, ainda mais no frio. Geralmente ficava pra mim a função, já que nossa mãe trabalhava muito. – Deu de ombros, lembrando da infância e adolescência.
- Tem quantas irmãs? – Fulton perguntou, curioso.
- Quatro. Mas convivo com três. A mais nova é de outro relacionamento do meu pai e não temos contato. – Ramona explicou, simples. – Sou a mais velha. Depois vem a Becca, a Gabi e a Sam. Uma pior que a outra. – Brincou com a última parte, mesmo que fosse um pouco verdade. – E seus irmãos? Como eles são?
- Bem, são até que tranquilos. – O músico começou, franzindo o cenho. – David e Cheri não eram muito de aprontar, o posto de desgarrado sobrando pra mim. – Sorriu arteiro, arrancando risadas da vizinha. – Aliás, também sou o mais velho. Então sei como é ter de cuidar dos outros. – Soou cúmplice, enquanto acomodava-se no lado vago do sofá.
- E sua família era disfuncional? – Mona continuou com o interrogatório, sedenta em saber mais e mais sobre o outro. – A minha era um total desastre. Um pai sem responsabilidade nenhuma, uma mãe sobrecarregada... dificuldades financeiras e intrigas dos parentes. O caos perfeito. – Sentenciou, jogando tal memória para longe.
- Meu pai é veterano de guerra, a mente dele ficou muito tempo fodida. Ainda é, na verdade. Só que aprendemos a lidar. – O rapaz deixou o sorriso morrer, indicando que compartilhava das dificuldades. – Minha mãe era maravilhosa. Minha avó então... – Sentiu os olhos arderem, a angústia da perda tomando conta.
- Tenho certeza que sim. – A jovem colocou o copo na mesinha de centro e pegou as mãos do amigo, que parecia um garotinho amuado. – Quer mudar de assunto? – Indagou, a frase saindo mais afável que previsto.
- Tá tudo bem. – Fulton se prontificou a dizer. De novo estava emocional na frente dela. – Prefiro saber que ainda sinto falta, do que tudo ter adormecido. – Tentou sorrir outra vez, falhando miseravelmente.
- Vem cá, bobão. – Ramona o puxou com delicadeza para um abraço desajeitado, cheio de carinho e empatia. – Você é forte. Embaixo dessa casca de galanteador barato, existe um cara sensível e que passou por muita coisa. – Discursou, enquanto afagava as costas do colega. Compreendeu que as mulheres haviam falecido e que feridas ainda permaneciam abertas.
- Desculpe por isso. – O guitarrista se afastou minimamente, encontrando as pedras escuras e atentas, que lhe examinavam cheias de preocupação. – Eu... – Iria se explicar, mas não teve tempo. As palavras sumiram no instante em que os lábios quentes tocaram os seus.
Mona sequer ponderou sobre sua ação. Apenas queria tirar Jerry da bolha de melancolia, queria o fazer se sentir melhor. O beijo era singelo, tão distante do que ocorrera na lanchonete. Passeou as mãos pelos ombros largos, apertando suavemente como uma espécie de massagem, transmitindo acalento e algo mais, não tendo interesse em racionalizar sobre. Da perspectiva do músico, tudo pareceu silenciar-se. Bem, exceto as batidas que retumbavam no peito, fortes e descompassadas. Demorou alguns segundos para retribuir o gesto e apreciar o gosto doce da boca dela, nublando o restante dos sentidos numa embriaguez gostosa, um torpor do corpo e da alma. O casal não teve pressa em quebrar o contato, motivações pessoais dúbias ditando o desejo e a vontade de cada um. Por incrível parecesse, a malícia passara longe e em seu lugar uma sensação profunda e perigosa, que semeava as próprias raízes até no solo mais estéril, teimosa para entrar e criar morada nos corações alheios. O jeito seria aguardar a colheita, com seus frutos e flores coloridas, contaminando os escolhidos com a primavera que era a paixão e ajudando-os no inverno que se aproximava.
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Something's Gotta Turn Out Right
FanfictionJerry se sentia azarado. Nada estava dando certo em sua vida e pelo jeito, a maré não mudaria tão cedo. Era o que pensava até conhecer Ramona, a vizinha do apartamento de cima. Será que a convivência com ela faria as coisa darem finalmente certo?