Prazer, Alice in Chains.

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  Ramona fingia observar a paisagem pela janela do carro, apreciando a canção que tocava no rádio. Os óculos escuros escondendo os olhos fechados, enquanto o vento batia no rosto e trazia sensações pacificadoras. Devia ser quase hora do almoço e como combinado na noite anterior, Jerry os conduzia ao ensaio do Alice in Chains, a cabeleira dourada presa num rabo de cavalo baixo, deixando a bela face para ser apreciada totalmente.
  - Sempre leva garotas nos ensaios? – A ruiva perguntou, curiosa.
  - Raramente. – Cantrell respondeu. – Na verdade, você é a segunda. – Continuou, parando num sinal vermelho. – Se sinta privilegiada. – Soltou, sorrindo de lado.
  - Agradeço a oportunidade. – Ela ironizou, não fazendo questão o olhar. – E quem foi a primeira? – Continuou com as indagações, trazendo seu lado fofoqueiro para a superfície.
  - Uma ex-namorada. – O guitarrista deu de ombros. – Foi bem no início da banda, ainda nem fazíamos sucesso.
  - Me deixe adivinhar... Ela te chutou, não foi? – Ramona falou, não tendo intenção de magoar. Era só uma provocação. Porém, percebeu como o clima até então descontraído, mudou para algo pesado, a falta de resposta denunciando que pisara em algum calo alheio. – Sinto muito se toquei em um assunto delicado.
  - Tudo bem. É só que... que... – Jerry segurava o volante com força demasiada, os orbes azuis brilhando.
  - Não diga nada. – A jovem decretou, compadecendo-se do colega. – Gosta de sorvete? Podemos tomar uma casquinha depois do ensaio, o que acha? – Propôs, pensando ser melhor mudar de tópico.
  - Pode ser. – Cantrell sentiu a onda de alívio lhe abater, agradecendo por não ter que cavoucar feridas profundas. – Chegamos. – Informou, quando viraram mais uma esquina. Sem demora, estavam estacionando o veículo na primeira vaga disponível, pegando a guitarra no banco de trás e saindo para a rua.
  - Pessoal não vai estranhar ter um desconhecido, assim do nada, atrapalhando a reunião deles? – A ruiva colocou a pergunta na roda, dando-se conta apenas naquele momento. – Ou você os avisou?
  - Vai ser surpresa. – O rapaz brincou, enquanto adentravam o estúdio.  – Só relaxa. Eles não ligam. – Continuou, os conduzindo por alguns lances de escadas e parando frente uma porta pesada, pintada num preto fosco. Sem demora a abriu, dando um passo pro lado para que Ramona entrasse.
  - Ok... – Foi tudo o que ela disse, estranhando o cavalheirismo. Não tendo opções e começando a se arrepender de ter aceitado o convite, passou pelo loiro, focando em três belos espécimes masculinos concentrados nos próprios instrumentos e não a reparando.
  - Bom dia, otários. – Jerry saudou-os, sorrindo como o cafajeste que era.
  - Tá atrasado. – Um deles resmungou, rabugento, não se dignando a olhar o amigo.
  - Dez minutos. – Cantrell retrucou. - O Layne às vezes nem vem. Tu tá no lucro, Sean.
  - Não use meus erros para justificar os seus. – Layne proferiu no microfone, meio que de costas para os demais. – Esse aqui tá funcionando. – Apontou o objeto, indo para o outro.
  - Seus bundões, temos visita. – Um rapaz de cabeleira cacheada e cheia, denunciou, os fazendo direcionarem a atenção para a figura da jovem, que a esta altura havia encostado numa das paredes e assistia toda a interação com demasiado interesse.
  - Essa é a Ramona. – Jerry informou, indo até a colega e parando ao seu lado. – Vocês enchem tanto o saco que esqueci as apresentações. – Ralhou. – Ela irá assistir o ensaio e não, não estamos juntos. – Deixou previamente avisado, conhecendo o trio e as conclusões que tirariam.
  - Olá. – A ruiva acenou levemente, sorrindo simpática. – E sim, não estamos juntos. Tenho o mínimo de senso. – Teve de alfinetar, os vendo rir. – Sou só a vizinha.
  - Não consegui contar antes... – O guitarrista começou, sentando em uma banqueta estofada e abrindo o estojo com seu instrumento. – O teto do meu apartamento caiu e a Ramona ficou sem o chão da sala dela. – Resumiu, como se estivesse falando do clima.
  - Como assim?! – A pergunta foi feita em coro.
  - Moro no apartamento de cima e numa manhã meu chão, que também é o teto do amigo se vocês, cedeu. Agora, um buraco liga nossas casas e somos meio que forçados a conviver. Pelo menos até que consertem. – A mulher explicou paciente.
  - Meu Deus, Fulton! Tá mesmo numa maré de azar. – Sean comentou, franzindo o cenho.
  - É o karma por ser tão galinha. – Layne brincou, fazendo todos rirem menos Jerry, que não se esforçou em reprimir uma careta de desgosto.
  - Como se eu fosse o único nessa merda de cidade que faz isso. O Mike é pior e ninguém fala nada! – Cantrell ficou na defensiva, apontando um dedo acusador ao baixista.
  - A diferença aqui, amigo, é que não me envolvo com gente comprometida ou faço surubas com meio mundo. – Starr contra-atacou, satisfeito por conseguir deixar o outro constrangido.
  - Isso é passado. – Fulton respondeu, desviando o olhar para longe. Sentia os olhos de Ramona o encarando e não sabia a razão, aquilo era pior que toda a discussão.
  - Acho que tá bom, né? Jerry é gostoso e come uma galerinha, Mike se faz de rogado, mas é pior que a encomenda. – Sean decidiu que era hora de terminar com aquela baboseira. -  Agora vamos ensaiar? Foi pra isso que viemos, não foi? Então aquietem a porra da bunda no lugar de vocês e comecem a tocar. – Basicamente mandou, observando todos o obedecerem sem protestos e uma certa jovem sorrir com divertimento, vendo um bando de marmanjos como crianças do jardim de infância levando bronca da professora.
  Ramona não sabia se ria ou gargalhava com toda a cena que acabara de se desenrolar. Pelo jeito era assim que o quarteto se tratava, com alfinetadas recorrentes e brincadeiras um tanto quando infantis, mas que nada tinha contra. E ainda tinha o moderador das brigas e discussões, que soava como um pai autoritário e carinhoso. Fitou o baterista por longos segundos, quando o mesmo iniciou os batuques no instrumento, admitindo que era um homem lindo, com feições fortes e ao mesmo tempo doces e arteiras. Os piercings e os cabelos cacheados e longos só arremataram todo o charme e beleza, o fazendo ser hipnotizante. Passou dele para Mike, que também poderia seduzir quem quisesse. A vasta cabeleira e os traços perfeitos só o valorizavam. O vocalista era algo único, alto e esguio, gritava ao microfone uma das melhores vozes que um dia se poderia ter, somado ao sotaque da região e a melancolia que emanava. E havia Cantrell, com as madeixas loiras e sedosas caindo sobre os ombros e descendo até quase a cintura, injustamente acentuando a beleza natural que o desgraçado possuía. Parecia que usava a guitarra como uma arma, atirando seus riffs poderosos para quem quer que fosse, sabendo do poder que tinham. Seus olhos se tornavam mais intensos, vorazes, um sorriso escondido no canto dos lábios denunciando o total prazer. Se amaldiçoou internamente por ter tirado os óculos escuros, pois, assim poderia continuar admirando o loiro e não parecer estar interessada. Até porque interessada ela estava, porém, em toda a banda. Só que sabia, Layne era carta fora do baralho, tendo um dos relacionamentos mais cobiçados e estáveis de Seattle. A cidade poderia ter se tornando grande, no entanto, os ares ainda se mantinham de interior, onde alguém conhece alguém que conhece alguém que é relevante e naturalmente uma teia se forma, conectando todos em apenas um círculo social. As fofocas também circulavam rápido, o que estreitava a sensação de intimidade. Ainda nesse turbilhão de pensamentos, não percebeu a pessoa que acabara de entrar no recinto e a olhava com curiosidade.
  - Olá. – A voz feminina chegou aos ouvidos da ruiva, que tomou um leve susto e virou-se para a origem do som.
  - Olá, tudo bem? – Ramona sorriu abertamente, se recuperando da surpresa e achando engraçado a coincidência. – Demri, não é? – Perguntou dissimulada, estendendo a mão em apresentação. – Ramona, muito prazer.
  - O prazer é meu, mas acho que já te conheço de algum lugar. – A recém-chegada franziu o cenho, como que se esforçando em lembrar.
  - Trabalho como bartender em vários pubs da cidade. Deve ser isto. – A jovem explicou, assistindo a outra concordar sem protestos. Era até bom a mulher ter aparecido, ou então permaneceria secando os belos espécimes a sua frente.
  - Quer sair um pouco? – Demri apontou a porta, não dando tempo de resposta e pegando Ramona pela mão, as conduzindo para fora do estúdio como se fossem velhas amigas.
  A ruiva deixou-se ser levada, rindo baixo enquanto desciam as escadas e quando viu, estava outra vez na calçada movimentada. Deu de ombros, seguindo a recém conhecida e ponderando o que poderia acontecer. Nada de importante ou perigoso. Pelo menos, era o que inocentemente imaginava.

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