Rui
Ontem, a única parte boa de ter ido àquela pousada foi ter nadado, ver que Liz parou de usar sua aliança foi interessante, mas ter perguntado sobre as cicatrizes que ganhei lutando contra Cláudio e um cara de uma gangue e sua faca não foi legal. Eu realmente estou confuso, por que ela é tão curiosa sobre meu passado? E por que não está mais usando a aliança de casamento?
Meu tio me tira de meus devaneios batendo na porta do quarto que estou hospedado. Acabei meu almoço e estava descansando os vinte minutos que tenho até voltar ao serviço. Eu o respondo e ele entra no quarto.
— Tem uma ruiva querendo te ver.
Ele diz, orgulhoso.
— Não sabia que tinha namorada, Rui.
Franzo o cenho.
— Não tenho.
Respondo e levanto depressa, indo pegar minha blusa.
Quem será essa mulher? Não lembro de conhecer nenhuma ruiva.
Levanto a cabeça quando a pior suposição vem à minha mente.
Não pode ser Priscila. Não agora, não aqui.
Pensando bem, Priscila deve ser a pessoa que insiste em me ligar e que não diz nada. Ela mesma deve ter vindo para outra cidade buscar vingança pelo pai. Por isso falou com meu tio como se me conhecesse a ponto dele achar que nós namoramos.
Droga! Ela sabe onde trabalho, onde moro, conhece meu tio. Preciso descobrir o que ela pretende fazer antes que faça qualquer coisa.
Nem parece que seu pai a abandonara quando criança, mal a visitava ou pagava sua pensão, o que faz essa mulher vir atrás de mim para se vingar de Cláudio? Odeio confessar, mas tenho medo de descobrir.
Coloco a blusa e sigo quase correndo para a oficina, preocupado.
Assim que chego, uma jovem mulher de cabelo longo se vira para mim e sorri.
— Rui, bom te ver de novo.
Diz, estendendo a mão.
Suspiro alto, aliviado, e enfim a cumprimento.
Não é ela. Pensei que poderia ter pintado o cabelo, pois era castanho. Mas essa moça também não é estranha, só não lembro de onde a conheço.
— De onde a gente se conhece mesmo?
Ela ri, inclinando a cabeça para o lado. Chega mais perto de mim.
— Da academia, bobinho. Carla.
É claro, a recepcionista. Por isso então perguntou onde eu trabalhava, realmente essa informação não é necessária num cadastro de qualquer academia. Para ela foi.
Carla bate no meu ombro de leve. Evito olhar para Júnior e seu Jair que me encaram. O garoto não para de sorrir para mim e faz gestos obscenos que o adulto repreende. Tento me controlar na frente da moça porque vez ou outra Júnior realmente consegue ser engraçado.
— Como pode não se lembrar de mim? Fiquei ofendida.
Forço um sorriso amarelo, não quis ofendê-la e também acho que ela não está realmente ofendida, mas a essa altura estou sem graça até com meus colegas, meu rosto queima, não quero ficar ainda mais corado por estender o assunto, então decido mudar logo. Dou um passo para trás e limpo a garganta.
— Bom, mas já me lembrei. Como posso te ajudar?
Ela passa a mão nas ondas do cabelo.
— Ah. Minha moto estragou. Não sei o que houve, pode resolver para mim?
Meneio a cabeça e olho a trezentos azul dela, agacho e a observo bem. Aparentemente não tem nenhum problema com os pneus nem rodas nem descanso, pedal ou guidão.
— O que aconteceu que te fez vir aqui?
Carla suspira.
— Ela parou comigo andando. Quase caí.
Reclama enquanto eu levanto.
— Pode me dar a chave?
Alcança minha mão estendida e sorri sem mostrar os dentes. Seu olhos verdes maldosos me encaram, desvio o olhar para sua moto, tento ligar e ela falha, então olho o ponteiro que indica a gasolina e descubro o “problema”.
— Está sem gasolina.
Ela finge surpresa.
— Que boba eu sou. Não lembrei de abastecer. Será que você poderia ir ao posto comigo para comprar?
Ela aponta com a cabeça para minha moto.
— Aqui tem um galão, pode usar!
Olho para Júnior, o solícito, querendo esmurrá-lo. Ele não entende minha expressão de raiva e dá de ombros.
Não acredito que vou dar uma carona a uma quase estranha na moto que era do meu pai, se bem que se ele ainda estivesse vivo me xingaria por eu não ajudar uma mulher bonita. Por outro lado, ela vai aumentar suas expectativas ao meu respeito e não quero que se magoe já que não me sinto mais tão disponível.
Levanto as sobrancelhas, surpreso por ter alinhado tão claramente meus sentimentos na minha mente.
Carla espera ansiosa pela resposta.
— Vou num pé e volto no outro.
Que não foi a que queria. Ela insiste em ir comigo, mas já que tomei essa decisão, então tenho que sustentá-la. Ando rápido, pego o galão com a mão direita e sigo para a moto. Irei ao posto de gasolina sozinho. Ouço Carla insistir e a ignoro.
***
Quando volto sou rápido, coloco a gasolina na moto dela, derramando um pouco no tanque. Júnior me entrega um pano manchado de graxa e procuro o lugar mais limpo nele para passar onde molhei. Logo a dispenso, seco.
— A gente se vê na academia então?
Já na moto me questiona, desanimada.
— É claro. Até lá.
Sorri com um pouco de esperança. Sorrio de volta, me perguntando se fui rude com ela e torcendo para que me esqueça logo.
— Até.
Carla me paga pela gasolina e dá a partida.
— Cara, o que deu em você? Por que não deu a mínima para a bonitona?
Júnior testa minha paciência mais uma vez.
— Não é da sua conta.
Ouço seu Jair rir e Júnior reclamar com ele.
— Até parece que o senhor também não quer saber.
Vou para o banheiro da oficina depressa, jogo água no rosto para tentar esclarecer as ideias. O que essa minha atitude diz sobre mim? Por que ser fiel a quem nem está comigo?
***
Mais tarde, já na academia, vejo que Liz já chegou e então depois de me alongar rápido vou até os halteres para fazer rosca direta, assim que acabo esse exercício, troco os pesos e começo a elevação lateral, lembro que nesse momento Liz faz abdução na máquina e leva um peso para fazer agachamento conjugado. Assim que a vejo sair da cadeira extensora, paro minha primeira sequência de repetições e me viro em direção aos halteres para pegar o dela de vinte e cinco quilos quando ela passa para a mesa flexora. Fico confuso, será que mudou o treino? Por que faria isso? Para não precisar da minha ajuda talvez.
Na metade do treino fui ao banheiro e na volta passei por ela enquanto enchia sua garrafinha no bebedouro. Fiquei encarando e mesmo eu achando que não tivesse como ela não ter me notado, Liz me ignora. Não sei o que aconteceu, mas não vou para casa sem descobrir.
***
Terminei meu treino sem fazer a meia hora de esteira de sempre e agora estou na entrada da academia esperando Liz passar. O que acontece depois de alguns minutos.
— Oi.
Ela dá um gritinho e põe a mão esquerda na boca — que ainda está sem aliança por sinal — eu a espero se recompor com paciência me sentindo mal por tê-la assustado. Não era a intenção.
— O que está fazendo aqui?
Ela questiona.
— Estava te esperando.
Ela fica surpresa, agora com minha resposta, e suspira rápido.
— O que você quer?
Sinceramente eu não sei. Dou um passo em sua direção, ela recua e isso é o cúmulo.
— Por que está agindo assim comigo?
Franzo o cenho, afetado. Liz engole em seco e respira fundo, dessa vez devagar.
— Eu...
Sua resposta é interrompida pelo barulho do meu celular, olho a tela e vejo aquele número de novo. Final sete, quatro, sete, meia. Liz se desvencilha de mim graças a minha distração e anda rápido, fugindo de mim de novo.
Bufo, irritado, e decido resolver um dos meus problemas. Finalmente atendo o celular. Só ouço uma respiração, nenhuma palavra. Também não falo, aguardo mais um pouco até não sobrar mais paciência.
— Quem é, droga?
Vocifero e a pessoa do outro lado encerra a ligação. Não aguento mais esse tormento, como se minha vida tivesse espaço suficiente para mais um drama.
Liz vem para a academia a pé, então se eu ainda quiser consigo alcançá-la. Claro que quero.
Subo na moto e a alcanço. Ela vira os olhos, irritada.
— Quando vamos trabalhar de novo?
Ignoro a falta de resposta que tive na primeira pergunta e me concentro nessa.
Depois de pensar um pouco, hesitante, ela responde.
— Amanhã as duas. Eu te mando o endereço.
Olha para mim atrás de aprovação, no momento só consigo pensar no quanto Liz é confusa. Minutsos atrás não olhou na minha cara, agora está marcando de me ver. O que tem de errado com ela? A época de ter medo de mim quando mal nos conhecíamos já passou.
Liz levanta as sobrancelhas a espera de uma confirmação e eu meneio a cabeça, lhe entregando o que queria.
Acelero a moto, me despedindo. Decido dar uma volta para espairecer antes de ir para casa, digo, para casa de Tadeu. Passo devagar na Orla Brigitte Bardot admirando a paisagem e as luzinhas dos restaurantes acesas que dão um charme único ao ambiente. Respiro fundo, sentindo a brisa noturna e soltando o ar levemente me dando tempo para tentar entender o que está acontecendo com Liz e comigo, afinal também não estou agindo normal. Por que senti que devia ajudá-la com o halter mais cedo? E por que ofereci carona ontem na pousada sabendo que ela não anda de moto?
Suspiro alto dessa vez já na metade da rua calçada. Ouço pessoas conversando em espanhol e lembro que na minha cidade Natal também tem imigrantes, mas a quantidade nem se compara com aqui, afinal uma cidade litorânea tão charmosa e visitada como Búzios é a primeira opção da maioria deles, graças a isso tem muita oportunidade de trabalho aqui para brasileiros e para nossos amigos também latinos.
Essa constatação me tomou o tempo de ir até o alto da rua, mas como quero andar mais um pouco de moto, dou meia volta e continuo na mesma velocidade.
Foco outra vez na minha missão de descobrir o que está acontecendo já que Liz fugiu de mim, pelo menos vamos nos ver amanhã, então vou insistir para que me conte, afinal não adianta eu tentar adivinhar algo que eu simplesmente não sei. Não dá para entender porquê tenho ficado nervoso quando estou com ela e ansioso para vê-la quando marcamos um encontro de trabalho ou na academia. Liz não parece com ninguém que fiquei antes, ela é sentimental demais, delicada, a única coisa que têm em comum é o trauma. Eu atraio pessoas traumatizadas , quando não, as deixo dessa forma. Talvez seja melhor Liz se afastar mesmo para que não fique pior.
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Um passo de cada vez (COMPLETO)
Romance🔴Liz perde o recém marido e com ele se vai sua alegria pela vida. A jovem passa anos sem qualquer esperança ou objetivo até sua irmã caçula ter a ideia de fazer uma lista a fim de ajudá-la. Cumprindo determinado passo dessa inusitada lista, ela con...