Epílogo

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Liz — quase 3 anos depois

Sai do elevador já no térreo do pequeno prédio da editora. Vim entregar as ilustrações do quarto livro de Daiane e firmar contrato com o terceiro autor que trabalho consecutivamente. Estou trabalhando num drama, no qual ilustro várias paisagens, e um romance, no qual ilustro alguns personagens e seus animais de estimação. Ilustrar cachorro e calopsitas me faz lembrar de quando trabalhava com livros infantis. Desde que voltei a trabalhar, foquei apenas em livros adultos, mas se surgir uma oportunidade, não recusarei.
Estou melhor que nunca na minha carreira, nem mesmo antes da depressão, tive tantos contratos de uma vez. Aprisionado(s) foi mais que uma oportunidade quando eu precisava, foi um divisor de águas na minha vida profissional. Ilustrar o primeiro livro de uma editora tão renomada quanto Daiane realmente não foi pouca coisa. Rui também está contente com seu trabalho. Há anos ele gerencia a oficina de Tadeu, nesse tempo ele aumentou o lugar e estendeu o horário de trabalho. Contratou mais três mecânicos para assim darem conta de todo serviço que têm. Finalmente seu primo, Tiago, está em casa por mais de uma semana dessa vez. Ele tentará ajudar ao pai quando Rui estiver fora.
Caminho até meu carro e entro nele depressa, já são nove horas da manhã e ainda preciso passar na cafeteria. Na ida, admiro meu chaveiro já antigo com a foto do dia da estreia do livro, em que tanto trabalhamos. A foto é um recorte de Rui olhando para mim e eu sorrindo, foi a nossa primeira por isso é tão especial Também a revelei, mas por inteira e a coloquei num porta retrato extra que comprei para ela. Eu a pendurei no corredor de casa na época.
Não demoro para chegar à cafeteria. Estaciono e entro, fazendo o barulho que Rui tanto odeia ao passar pela porta. Sorrio para Sofia, que me recebe do balcão.
— Dois sanduíches, um café puro e um com leite?
Concordo, balançando a cabeça.
— Sabia que você é demais?
Eu perdi a conta de quantas vezes eu chegava ao nosso apartamento e tinha sanduíches daqui que Rui comprava. Por isso acabei viciando também.
— Sim.
Sofia diz antes de repetir o pedido para uma moça nova prepará-lo. É incrível como nenhum funcionário daqui além de Sofia fica mais que só alguns meses. Ela se debruça no balcão.
— Porque ele não veio? Podiam comer aqui.
Ela sente falta de Rui. Com o tempo, frequentando aqui, eles acabaram por fazer amizade — o que eu adoro dizer que previ — eles obviamente se identificaram, visto que seus temperamentos são parecidos.
— Ele está arrumando o apartamento. Eu precisei sair, então fiquei de passar aqui.
Explico, colocando o peso sobre uma perna. Sofia levanta a cabeça e me olha de cima a baixo.
— Que corpão.
Ela elogia, meu rosto esquenta.
Um ano atrás cheguei ao corpo que tinha e amava antigamente. Com o incentivo de Rui e uma alimentação calórica, mas saudável, eu consegui me superar. Hoje tenho dez quilos a mais e estou mais que satisfeita com meu corpo.
— E você não está perdendo.
Reparo seu corpo esbelto. Deve ter perdido os dez quilos que eu achei porque agora está como queria ficar. Com seu quadril largo, Sofia lembra um violão, e seu rosto quase sem rugas, faz parecer que tem menos idade do que tem.
A moça entrega meu pedido, eu pago e me despeço, dando um abraço forçado em Sofia depois de passar na portinha do balcão.
— Aqui.
Ela pega dois docinhos saudáveis e me entrega.
— Obrigada, amiga.
Solto um beijo no ar.
— Não demorem muito!
Ela se refere à viagem que Rui e eu estamos prestes a fazer.
— Vamos morrer de saudade.
Respondo.
— Está mais para morrerem de abstinência.
Ela aponta com o queixo para a sacola de papel pardo com os sanduíches que amamos na minha mão. Dou risada e solto outro beijo, finalmente saindo do estabelecimento.
Atravesso a rua para entrar no carro e vejo Carla passando de bicicleta, ela acena para mim. Retribuo o gesto e acomodo meu lanche no banco do carona. Logo ligo o carro e sigo para casa.
Carla parece outra pessoa. Suas roupas são modestas, sua fala, doce, e até suas amizades mudaram. Ela se converteu ao cristianismo há algum tempo e desde então nunca mais a ouvi fazer fofocas ou paquerar deliberadamente alguns homens comprometidos. Na época que entrou para a igreja, veio até mim pedir perdão por ter instigado Cíntia a falar comigo — no dia que fui ao parque radical com Rui — e por ter espalhado boatos que eu estava namorando ele quando ainda estávamos mantendo nossa recente relação em segredo. Ela também se desculpou por coisas que nem sabia que tinha feito, como dar em cima de Rui quando ele já estava comigo e de Otávio quando era vivo.
Por mais que eu não tenha contato com Cíntia, moramos na mesma cidade e vez ou outra tenho notícias sua. Infelizmente ela não mudou. Continua me odiando, agora ainda mais.
Encaro a aliança dourada no meu anelar direito.
Ela não aceita eu casar com outro homem, mesmo quase cinco anos depois de seu irmão ter falecido. Ainda assim eu a perdoei há tempo, ainda que não tenha me pedido perdão pelas coisas que fez. Eu até levei a louça chique rosê que me deu de casamento para o apartamento.
Desligo o carro em frente ao prédio quando noto alguém conhecido na calçada. Um homem de perfil, que não é estranho, acompanhado de uma criança. Desço do carro, já que é impossível entrar na garagem com eles na frente dela, sem saber o que está por vir. Fecho a porta, fazendo barulho e o homem olhar para mim.
— Renan.
Sussurro para mim mesma. Eles andam até mim, na beirada da calçada. Eu continuo embasbacada, é sempre um choque ver o homem que matou meu marido.
— Oi, como você está?
Ele tenta sorrir, sem graça. Mostro instintivamente minha mão direita.
— Noiva.
Agora dá um sorriso aberto.
— Meus parabéns.
Não sei porquê disse isso ao invés de só “bem”. Talvez por ser uma novidade para mim, já que Rui me pediu em casamento esse mês.
— Eu saí essa semana.
Ele só pode estar se referindo à penitenciária, para onde sei que foi.
— Precisava te ver.
— Também queria saber se conseguiu me perdoar para...
Ele inclina a cabeça.
— Sabe...
Suspira e volta a olhar para mim.
— Viver tranquilo.
Dá uma risadinha nervosa. Balanço a cabeça em resposta.
— Muita coisa mudou nesse tempo.
Digo.
— Para melhor.
Consigo sorrir. O menino chuta uma pedra e por causa do barulho, olhamos para ele.
— Ah!
Renan limpa a garganta.
— Esse é meu filho.
Apresenta.
— Ele vai fazer cinco anos esse ano.
Completa, me fazendo lembrar de que nasceu no dia que Otávio morreu.
O menino me encara.
— Fala para ela seu nome, filho.
Renan cutuca o menino.
— Otávio.
Meu queixo cai, meu ar se despede. Quase não posso acreditar no que ouvi. Respiro fundo, recuperando o ar e deixando as lágrimas apressadas rolarem no meu rosto com certeza pálido.
— Que nome lindo.
Seco o rosto abruptamente sem deixar de olhá-lo por um bom tempo.
— Obrigado.
Responde por educação. Finalmente olho para Renan, quem impropositalmente acabou com minha vida e acaba de me devolver um pouco da alegria que Otávio era para mim. Mais lágrimas caem e eu insisto em secá-las. Não acho saudável ficar muito mais tempo com o menino, já que agora ele é especial para mim mesmo sem ser.
— Eu preciso ir.
Digo depressa e abaixo, ficando da altura do garoto.
— Foi bom te conhecer, Otávio.
Sorrio, triste por essa frase ter mais significado para mim que apenas um cumprimento.
— Tenha uma vida, Liz. É o que eu mais desejo.
Renan me oferece a mão, eu hesito, mas a aperto, finalizando assim o capítulo mais doloroso da minha vida. Dou as costas a eles e sigo para o carro.
Segundos depois já na garagem do prédio, olho para o banco de trás, conferindo não ter deixado nada. Pego a sacola dos lanches e ainda abalada, saio do carro em direção às escadas.
— Cheguei!
Digo, entrando no apartamento que estou morando há dez meses desde que vendi minha casa. Rui disse que não precisava eu alugar ou comprar um lugar, então resolvi vir.
Passo pelo corredor pequeno, onde hoje se encontra quase todas fotos do meu antigo corredor. Só a de Otávio, Sol, eu e alguns amigos que guardei num álbum, que separei para isso antes de vir. Nesse conjunto de quadros coloquei outras fotos com Rui no lugar. Por mais que Otávio, seja para sempre parte de mim, não acho conveniente sua foto estar na parede de onde moro com meu futuro marido.
Chego ao quarto e vejo Rui fechando sua mala.
— Finalmente terminei.
Ele me olha, suspirando, e seguindo até nossa cômoda. Pega o colar de prata e pingente de coração que guardo numa caixa em cima de uma maior — a dos bilhetinhos cessados, mas eternos de papai — e o coloca em mim.
Ele está usando preto como sempre, mas sua barba e cabelo são um pouco maiores do que quando nos conhecemos.
— Trouxe os lanches.
Aponto com a cabeça para a cozinha, pois os deixei na mesa. Seguimos então para lá.
Rui fica me observando enquanto sentamos e pegamos os sanduíches.
— Você está bem?
Acaricio sua mão por cima da mesa.
— Agora estou.
Sempre tive curiosidade sobre Renan, achava que ele já tinha sido solto, mas nunca achei que viesse falar comigo tampouco trazer seu filho, o qual tem o nome como homenagem a Otávio.
Rui sorri e dá uma mordida no seu sanduíche.
Quando chegarmos ao nosso primeiro destino, conto o que aconteceu, mas não quero que fique distraído enquanto conduz a moto por algumas horas.
Dou um gole no meu café com leite e começo a comer também, encarando nosso sofá azul marinho, onde Benjamim tombou suco de uva esses dias. Viro os olhos e termino meu lanche pouco depois de Rui.
Há algumas semanas falei com Daiane que tiraria as férias que nunca tirei por trabalhar com contratos e não expediente. Rui tampouco folgou por trinta dias seguidos desde os treze anos de idade — nem durante o ano que foi preso ele parou de trabalhar — então achamos que é chegada nossa hora. Por um mês, iremos para aonde nossa moto nos levar. Vamos começar com cidades do estado e então seguiremos para outros, passando no máximo um dia em cada um. Durante a jornada, ficaremos em hotéis, pousadas e experimentaremos as comidas e costumes de cada lugar. Viveremos mais uma aventura.
O valor que Tadeu terminou de pagar Rui pela casa da sua mãe vai ajudar com essa aventura, o da minha casa está investido e não pretendemos mexer agora.
Terminamos de lanchar, usamos o banheiro e trancamos o apartamento, passando a chave por debaixo da porta de Sol por precaução. Então descemos as escadas com as mochilas. Ontem fomos à casa de Tadeu nos despedirmos dele e de Priscila e como Tiago tinha chegado, o conheci. Depois passamos na casa dos meus pais e nos despedimos deles, de Ada e de seu namorado. Meu pai pedir para que Rui protegesse sua filhinha e que não corresse. Gosto de lembrar que há tempo eles têm uma relação de respeito e amizade. Sol, Felipe e Benjamim vieram aqui mais cedo. Dei um abraço longo no meu sobrinho, que ainda posso ouvir reclamar.
“Ai, titia, me solta!”
Na garagem, arrumamos as mochilas nas malas laterais da moto, colocamos os capacetes e subimos nela, saindo do prédio.
Hoje o dia está lindo. É fresco, mas ensolarado. Aproveito que Rui não está em alta velocidade por estar no meio da cidade e abro os braços, curtindo o vento.
Há três anos eu jamais poderia imaginar que viajaria por aí em cima de uma moto com o cara misterioso de outra cidade que acabava de conhecer. Também não podia imaginar que seria feliz e me sentiria livre outra vez.
Respiro fundo, sentindo aromas de pães e flores se misturarem à medida que passamos pela rua.
Rui me devolveu essas coisas e me deu muito mais. Ele me ajudou quando eu nem conseguia pedir ajuda, eu o guiei para fora da escuridão. Nosso amor nos curou e agora podemos seguir tranquilos para nosso próximo passo.
Eu o abraço com toda força e Rui acelera.

FIM

Um passo de cada vez (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora