Capítulo 15

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Liz

Já são nove da manhã e Rui ainda não me respondeu. Preciso que pare logo de me ignorar para finalmente poder fazer isso.
Fiz meu café da manhã hoje, dois ovos no pão fresco que meu pai trouxe agorinha. Eu realmente preciso parar de depender deles para trazer minhas compras, antes mesmo eles trazendo eu quase não comia, mas já estou bem melhor agora, só que me acomodei. Chega, a partir de hoje vou voltar a cozinhar e a fazer compras para casa.
Refaço a primeira ilustração, de Rui sentado no banco da Orla. Depois que terminei a leitura do livro de Daiane, entendi os sentimentos do protagonista e senti que precisava acrescentá-los à ilustração, principalmente o olhar e expressão facial. Vou para o segundo trabalho, Rui na piscina. Coloco mais densidade nas sombras na água e no seu rosto, trazendo mais verossimilhança à ilustração. Sigo para a última, preciso consertar a profundidade da rede que deve ser uma cama. Olho algumas fotos na internet e consigo soar convincente. Satisfeita com as melhoras que fiz começo a dar cor, tons pastéis como Daiane pediu. Olho para os meus trabalhos prontos, orgulhosa. Quem diria que eu conseguiria ilustrar de novo depois de tudo que aconteceu e ainda pessoas realistas. Lembro que eu costumava dar vida a objetos inanimados e personificar animais. Com certeza, esses trabalhos têm seu valor, mas para mim, tive uma grande evolução. De coisas às pessoas, de livros infantis a suspense. Eu mudei nesse último ano, justo é que minha maneira de ilustrar também tenha mudado.
Olho para o relógio da sala e noto que passei três boas horas trabalhando. Meu estômago reclama que ainda não almocei e como se minha mãe soubesse, ela toca a campainha.
— Costela com aipim.
Salivo e a agradeço. Vou ao banheiro lavar as mãos e volto rápido, me sentando à mesa, onde ela já está.
— Já comeu?
Ela sorri e me responde que sim enquanto eu coloco uma garfada na boca.
— É tudo seu, querida.
Sorrio, animada, e lembro do que pensei outro dia e mais cedo, resolvo avisá-la.
— Mãe, quero voltar a cozinhar e a comprar minha comida.
Ela ergue as sobrancelhas.
— Eu agradeço muito por ter cuidado da milha alimentação esse ano e garantido que eu não tivesse uma anemia.
— Só fiz o que toda mãe faria, querida.
— Mesmo que seja verdade, não diminui seu crédito e o de papai.
Levanto o dedo, reivindicando o reconhecimento dele com os bilhetinhos que foram e são muito importantes para mim. Tenho todos guardados na minha mesa de cabeceira.
— Sou muito grata a vocês, de verdade.
Dou mais uma garfada, pegando agora junto uma fatia fina de tomate.
— Nosso desejo era ver você bem, filha. E você não sabe como estamos felizes.
Ela joga o cabelo loiro para trás. Eu continuo minha refeição enquanto ela seca os olhos lacrimejados.
— Sabe...
Respiro fundo esperando o comentário que previa.
— O Rui é bonitão, não acha?
Dou a ultima garfada e levanto da mesa depressa, sem encará-la.
— Não sei.
Respondo ainda de boca cheia. Chego à cozinha e começo a lavar o pote. Ela se levanta e me segue.
— Não quero te pressionar, mas eu vi como ele te olhou ontem depois que foi seca na despedida dele.
Eu a olho com a testa franzida, incrédula. Realmente não dá para acreditar que está defendendo Rui para mim. Ela mal o conhece. E eu tenho meus motivos para ter sido seca. Eu preciso de um tempo! Que finalmente vou ter assim que ele me responder e eu pagá-lo. E o que ela quer dizer com “como ele te olhou”? Eu a questiono, lavando o garfo agora.
— Como quem gosta de você.
Responde depois de suspirar e sorrir enquanto passeava pela cozinha.
— Nossa, agora sei de quem Ada puxou a implicância.
Viro os olhos e ela ri. Termino de secar o pote dela e a entrego numa sacola.
— Querida, agora falando sério, eu quero que seja feliz no amor de novo e sei que gosta daquele rapaz.
Eu a ouço, quieta.
— Ele parece ser legal já que te ajudou a voltar a ilustrar.
Ela põe as mãos nos meus ombros.
— Não estou dizendo que precisa ser ele, só estou dizendo que não tem problema em ser se você quiser.
Dá de ombros e me oferece um sorriso caloroso. E quase de repente se afasta, saindo da cozinha. Como se tivesse concluído o objetivo de ter vindo aqui.
— Agora tenho que ir, é hora da visita de Sol, você vem?
Esqueci do horário da visita e acabei marcando com Daiane de entregá-la as ilustrações daqui a meia hora.
— Eu marquei um compromisso, mas vou desmarcar.
Ela toca minha mão que já está no celular.
— Ela deve receber alta amanhã de manhã, não precisa ir.
Fico me sentindo mal em realmente querer fazer isso, então disco o número de Sol.
— Se ela estiver bem, eu a visito em sua casa amanhã.
Minha mãe meneia a cabeça. Sol atende quase gritando com Felipe. Ficamos apreensivas.
— Oi, irmã, está tudo bem?
— Eu estou, mas Felipe não sabe fazer massagem nos meus pés enormes.
Ela bufa.
— Você acabou de ter filho, os hormônios ainda estão com tudo, mas tente não estrangular seu marido, por favor.
Rio do que nossa mãe diz. Sol, não.
— Eu não aguento mais! Estou exausta o tempo todo. E irritada também.
Ela desabafa.
— Ela só fica tranquila quando vê o Bem.
Felipe grita.
— É verdade. Mãe, Liz, ele teve alta!
Vibramos com a notícia e mamãe reclama dela não ter contado quando aconteceu, minutos atrás.
— Ele está no berçário, acabamos de voltar, mais tarde o veremos de novo e o doutor disse que amanhã vou para casa.
Vibramos de novo.
— Estou indo aí para te ver.
Sol agradece nossa mãe e pede para ela passar numa farmácia e levar absorventes de seios.
— Eu disse para Felipe comprar, mas ele não me ouve!
Outro grito.
— Foge, cunhado!
Agora um meu. Todas rimos, até a esquentadinha.
— Sol, tudo bem se eu for vê-la amanhã na sua casa?
Eu explico que marquei de ir à editora e ela concorda até porque deve estar mais tranquila amanhã. Eu agradeço e nos despedimos.
— Estou louca para conhecer meu neto. Mal o vimos ontem naquela incubadora!
Ela reclama e eu concordo.
Minutos depois, minha mãe se despede e vai para o hospital. Então sigo para o quarto, troco de roupa, pego meus trabalhos na sala e saio também.

***

Na sala de espera de Daiane, olho o celular de novo e nada de Rui quando milagrosamente o vejo digitando e respondendo que sua chave pix é seu número de celular, mas então ouço uma porta abrindo.
— Liz, pode entrar.
Daiane me recepciona e deixo para pagar Rui depois.
Entro na sala de Daiane que se senta ajeitando a gola do seu terninho rosa claro. Eu coloco meus trabalhos em cima de sua mesa e a mostro um por um reparando sua reação em todos, mas para minha surpresa ela não parece surpresa ou admirada. Ela é de se expressar, mas por que parece indiferente? Espalma as mãos na mesa de madeira e me encara, dando um sorriso enorme.
— Eu amei. Está contratada.
Solto o ar que não percebi que havia prendido. Meu coração está agitado e sinto minhas mãos suarem.
— Muito obrigada, Daiane.
É só o que consigo dizer e repetir.
— Você realmente exprimiu as emoções do meu personagem em suas expressões faciais e gestos na imagem. Não sei dizer qual é minha ilustração favorita.
Eu agradeço, recebendo com carinho seus elogios. Ela franze a testa.
— Mas está faltando algo...
Ai, não. Eu fiz tudo certinho e revisei várias vezes. Do que será que está sentindo falta?
— Uma quarta cena.
— O quê?
Penso alto. Ela se levanta da cadeira vermelha confortável.
— Nada mais justo que uma cena para o capítulo final, quando ele finalmente entende que quem matou seu pai foi ele. Antes dele ir para a sala acolchoada...
Ela fica andando de um lado para outro da sala.
— A cena dele sentado no chão do banheiro em sofrimento profundo. Com olhos fundos e cabeça recostada na parede.
Ela me lembra da cena triste e sorri.
— Eu queria que o leitor imaginasse essa cena, mas decidi que prefiro deixá-la exposta.
E decide isso agora?
— Acabei de decidir.
Daiane responde minha pergunta silenciosa.
Como negar um trabalho depois de finalmente conquistar um contrato? Como explicar que não quero, ou melhor, que não posso ver Rui?
— Ótima ideia.
Sorrio contra minha vontade. Ela agradece e se senta de novo.
— Pode me entregar amanhã?
Fico novamente surpresa. Isso é muito rápido, eu teria que marcar de ver Rui ainda hoje.
— É claro.
Finjo tranquilidade, já que ela não sabe que preciso de outra pessoa para fazer meu trabalho.
Depois de nos despedirmos, saí da sala, digitando uma mensagem para Rui.
“Preciso de mais uma cena, pode me ver hoje?”
Sei que ele deve ter desdenhado ao ler isso, mas o melhor que posso fazer por mim mesma é ser direta e profissional. Rui, surpreendentemente aceita, mas diz que só depois do treino. Mesmo preferindo encontrá-lo e fazer logo essa ilustração, eu concordo, sem opção, e agradeço.

***

Chego à academia, mapeando o lugar com os olhos à procura de Rui, mas pelo visto cheguei primeiro.
— Ele ainda não chegou.
Carla diz, passando a mão dentre o cabelo ruivo. Eu coloco meu rabo de cavalo para a frente. Quase respondo com um meneio de cabeça a sua afirmação até me tocar do que ousou insinuar.
— Como?
Questiono, me fazendo de sonsa e fingindo não saber que está falando de Rui. Com certeza reparou nossa pouca interação aqui. Teve muita tensão nas vezes que ele me ajudou com o peso e raiva quando me encarou aquele dia no bebedouro e eu o ignorei, ela reparou esses escassos momentos de proximidade e deduziu certo, que existe alguma coisa entre a gente, mesmo eu precisando de um tempo para saber o que fazer com essa coisa. Carla dá um sorriso falso.
— Estou falando do seu namorado, ele ainda não chegou.
Como essa descarada pode falar comigo assim? Não tem o mínimo de respeito ou de discrição pelo menos? Preciso manter a postura mesmo louca para avançar nela.
— Carla, eu não sei do que está falando, eu não tenho namorado.
Minha voz é firme, mas calma. Por enquanto. Ela levanta as sobrancelhas também tingidas e faz da boca fina, uma linha.
— Ah sim.
Seus sorriso falso me irrita, mas consigo responder com um igual, não, um melhor. Dou as costas e passo na catraca eletrônica após digitar minha senha de três dígitos.
Energizo minha raiva de Carla no meu treino e consigo até progredir no peso. Estou treinando inferiores, como antes de ontem.

***

No segundo aparelho, Rui surge no corredor largo, de camiseta preta e boné da mesma cor, mesmo sendo de noite e estando num lugar fechado. Ele mastiga um chiclete e se aproxima de onde estou em câmera lenta. Quando está chegando mais perto, reparo que sua barba está crescendo, o que lhe entrega um visual mais desleixado, que também não é nada mal. Sinto seu perfume amadeirado e suave quando passa por mim. Fico surpresa, não falou comigo tampouco me olhou, eu devo ter parecido uma boba por ter ficado encarando ele. Espero que Carla não reparou isso. Rui passa por mim de volta com uma garrafa de álcool em gel na mão, não tinha nenhuma perto de onde vai treinar seus superiores? Difícil de acreditar. Com certeza está chateado por eu ter sido seca em nossa despedida ontem. Se ele soubesse o motivo de eu querer evitá-lo, não ficaria assim.
Rui passa o treino me ignorando, mas como sempre faz questão de me ajudar, quero acreditar que é chegado nosso momento de interação. Caminho para a máquina de abdução e adução devagar, dando tempo suficiente para ele me ver e pegar o halter para mim, mas chego à máquina e nada acontece, ele ainda está com seus halteres pesados e distraído com os fones de ouvido, que nunca trouxe antes. Levemente desapontada, passo por ele e busco meu halter de vinte e cinco quilos, demonstrando a dificuldade óbvia que tenho ao carregá-lo. Rui sequer olha para mim, me finjo não afetada enquanto passo por ele e finalmente trago o halter em segurança. Sento, sentindo uma pontada de orgulho de mim mesma, já que não fui tão desengonçada como da última vez quando tentei trazer esse halter. Sinto que minha força está aumentando e sorrio para mim mesma.
Por que Rui resolveu me ignorar aqui se aceitou se encontrar comigo mais tarde para uma última cena? Não faz muito sentido para mim, ele só pode estar querendo me mostrar como é ruim ser ignorado. De qualquer maneira, meus motivos são bem mais plausíveis que o dele.
Dou-me por vencida de que serei evitada até o fim dos treinos e continuo o meu, sem mais encará-lo também, até porque Carla é bem atenta à vida alheia e não quero que invente que vou casar desta vez.
Assim que acabo o treino de musculação, sigo até a esteira para caminhar alguns minutos até Rui acabar o seu. Do jeito que ele está chateado certeza que vai fazer aeróbico hoje, enrolando o máximo possível meu trabalho.
Alguns minutos depois Rui vem caminhando em minha direção, fico ansiosa esperando ele escolher uma esteira próxima de mim, mas sem surpresa ele passa direto para a fileira de esteiras da parte de trás. Viro os olhos. Realmente é muito irritante ser ignorada.
Meia hora depois e já corri, andei de novo e repeti os dois. Começo a ficar seriamente irritada. Reprimo algumas vezes a vontade de olhar para trás a fim de apressá-lo, mas é o momento de treinar minha paciência, que finalmente tem resultado. Ele chegou pouco depois de mim aqui na esteira, então imagino que agora completou seus trinta minutos de aeróbico. Rui passa por mim e me encara, fico até sem reação. Não esperava mais qualquer interação dele comigo aqui, mas entendo o sinal de que está indo embora. Eu o espero passar pela catraca eletrônica, que dá para ver daqui e só então desço da esteira. Sob o olhar maldoso de Carla passo por ela me despedindo educadamente como sempre. Saio da academia e procuro por Rui, o encontro de braços cruzados apoiado em sua moto uns metros depois de uma árvore em frente a casa vizinha. Chego perto.
— Oi.
Ele me lança um olhar preguiçoso e respira fundo.
— Onde vai ser?
Pergunta, mal encarado.
— Só me segue.
Digo, séria, e sigo para meu carro do outro lado da rua, olhando para a entrada da academia para conferir se não tem nenhuma ruiva me observando. Por sorte, ela está ocupada.
Entro no carro e dirijo até em casa, estaciono na rua e oriento Rui a deixar sua moto entre meu carro e o poste, realmente espero que nenhum vizinho note que trouxe um homem para a casa que eu morava com meu marido falecido há menos de dois anos. Isso renderia assunto até eu não aguentar mais. Dona Neuza com certeza seria a narradora do escândalo.
Entrando em casa, vigio a rua mais uma vez, mas só quem passa por ela é um casal desconhecido, então fico aliviada. Rui repara minha preocupação e desdenha dela, fazendo um barulhinho com a boca, antes de entrar. Fico nervosa ao ver Rui na minha casa. É estranho pensar que há pouco tempo Otávio era o homem aqui e agora, o seu oposto em personalidade e até aparência é toda a energia masculina. Ele dá uma olhada rápida pela sala de estar conjugada com a sala de jantar, mas concentra sua atenção num dos dois porta retratos em cima da mesa de centro, na qual Otávio está me abraçando na praia Azedinha. Aquele foi um dia incrível e bem romântico, fomos só nós dois de manhã cedo para lá e tivemos a sensação de estar em uma praia particular. Colocamos música alta e nadamos até cansar. Lanchamos os sanduíches que eu tinha levado já que os vendedores ambulantes só começaram a aparecer juntos de outros banhistas quando estávamos indo embora, horas depois. Fiquei ainda mais morena aquele dia e até Otávio que era negro, pegou mais cor. Rui olha para mim e eu limpo a garganta.
— Qual era o nome dele?
Pisco, surpresa com a pergunta.
— Otávio.
Respondo baixo. Rui meneia a cabeça e fica quieto. Olho o relógio da sala e já está tarde, resolvo então começar o trabalho logo. Não posso perder uma noite de sono, não quero que meus músculos diminuam por um café e estou com confiante de que vou conseguir ilustrar sem ele, além de também estar com pressa.
Informo Rui de que a cena será no banheiro, ele estranha.
— Está limpinho.
E então depois de eu mostrá-lo o caminho, ele vai na frente, pois passo no meu quarto rápido para pegar meu material que deixei lá. Já com ele no banheiro, me sento do lado de fora, na porta, com todo material no meu colo e digo para se sentar no chão encostado na parede e pôr os joelhos na altura do peito.
— Quando eu disser, por favor, coloque os braços sobre os joelhos e a cabeça encostada na parede.
Ele acena e então acho que é melhor tirar seu boné, já que o personagem não usa, me inclino em sua direção acreditando alcançá-lo já que está a um metro e alguns centímetros de mim. Tento tirar seu boné falhando e tombando minhas coisas quando caio de lado. Quem cai sentada? Inacreditável. Rui se assusta e pega meu braço na tentativa de me ajudar, apoio o outro no chão, me erguendo e ficando agachada para pegar meus lápis e cadernos que estão por toda parte, depois dele me ajudar e eu sentar, ele entrega seu boné.
— Era só pedir.
Concordo com a cabeça, sem graça. E finalmente começo a ilustrar. Ele segue todas instruções que eu dei e depois de demarcar o corpo com figuras geométricas, peço a última.
— Se conseguir ficar com os olhos perdidos, vai me ajudar muito.
Ele se concentra e não sei no que está pensando, mas deu certo. Seu olhar está longe e sua boca entreaberta.
— Perfeito.
Sussurro e ele olha para mim. Com toda emoção que está interpretando ou se lembrando, com todo sentimento e dor. Nesse momento não desviei o olhar, não fiquei sem graça, não senti que devia ignorá-lo, só retribuí a emoção explícita por ele. Até ele piscar rápido e mirar a pia na sua frente, engolindo em seco. Também me recompondo em continuo meu trabalho.
Fazendo o esboço do rosto, depois de captar o olhar perdido que Rui soube expressar perfeitamente e sua boca rosada entreaberta, faço as linhas do seu maxilar e resolvo incluir na ilustração a barba que está crescendo.
Assim que o aviso que termino, eu o entrego seu boné e ele o coloca, agora para trás, acho que gostei mais desse jeito, pois deixa seu rosto mais exposto. Paro de encará-lo e o ofereço água já indo buscar. Ele nem chega a responder. Volto, o entregando o copo cheio e sento segurando o meu no sofá. Ele me imita, desconfortável, e volta a olhar para a foto de antes. Para acabar com o silêncio constrangedor e saciar mais uma curiosidade, inicio uma conversa.
— Por que quis saber o nome dele?
Rui respira fundo e dá de ombros.
— Um rosto tem que ter um nome.
E então olha para mim. Percebo que como não conheceu Otávio, tudo que sabe sobre ele é o que o contei e que só agora viu uma foto sua. Acho que sua pergunta faz sentido afinal.
— Ele parecia ser legal.
Rui me surpreende ao dar sua opinião, que quase não escutei.
— Ele era incrível.
Sorrio para nossa foto onde Otávio mostrando sorriso bonito.
Rui levanta abruptamente do sofá e deposita seu copo quase vazio na mesa de centro.
— Bom, se já conseguiu o que queria, acho que encerramos.
Ele caminha em direção à porta. Pisco, sem entender sua pressa repentina. Será que não gostou de ouvir meu elogio para Otávio? Sendo sincera comigo mesma, acho que em seu lugar também me sentiria esquisita. Eu o sigo e viro a chave, a destrancando. Ele bufa e vira os olhos discretamente. Eu tranco a porta de novo. Sua impaciência me irrita e minha resposta à tal atitude é de também deixá-lo irritado. Ele franze a testa.
— O que está fazendo?
Eu respiro fundo rápido, pensando em alguma coisa para respondê-lo já que agi sem pensar.
— Por que aceitou fazer essa última cena se estava chateado comigo?
Falo mais alto do que pretendia. Ele fica desacreditado e desdenha de mim.
— Você que tinha voltado a me ignorar sabe-se lá o motivo. Eu te fiz um favor de vir aqui e ainda quer reclamar?
Ele esbraveja. Não esperava essa reação tão emotiva vinda dele.
— Não estou reclamando, estou perguntando.
Digo mais baixo, assumindo parte da culpa que tenho. Ele balança a cabeça e passa a mão no rosto.
— Se estamos esclarecendo as coisas aqui, então me diz...
Ele dá um passo em minha direção, deixando algumas centímetros entre nós.
— Por que está tão empenhada em me evitar?
Seus olhos caramelos confusos me fazem querer explicá-lo. Seu rosto tão perto de mim, me faz querer deixá-lo ainda mais. Então me aproximo um pouco dele e respiro fundo devagar desta vez, Rui relaxa os ombros, ficando visualmente menos irritado, me encara curioso por não entender porque me aproximei, mas parecendo não ter se incomodado, talvez até gostado. Eu o encaro por mais tempo que deveria, seus lábios parecem me chamar para onde quero ir. Eu pisco rápido, me desvencilho dele e alcanço a maçaneta, destrancando a porta novamente e a abrindo. Ele fica surpreso.
— Não queria ir embora?
Forço firmeza na decisão que tomei. Não posso responder sua pergunta, não posso contar-lhe que tenho sentimentos e me deixar totalmente vulnerável para um homem que entrou na minha vida dias atrás. E mais que obviamente não posso beijá-lo. Por melhor que foi saber que a vontade foi recíproca o melhor a fazer é afastá-lo e ter aquele tempo para decidir se quero tentar esquecer que  ele existe ou se vou atrás dele. E só depois vou poder respondê-lo com clareza.
Rui bufa pela última vez e tem seus olhos mais confusos que antes. Desvio de seu olhar fuzilador e então ele sai depressa. Bato a porta e me encosto nela enquanto lágrimas vêm à tona. Não choro por não ter inspiração para trabalhar, por não querer sair de casa nem por saudade de Otávio. Agora choro por um cara que me ajudou com as primeiras coisas que citei e que fez diminuir a última. Deslizo até o chão, sem mais me martirizar por ter sentimentos por outro homem, mas me xingando por tratá-lo mal. Meus olhos passeiam pela sala turva, os seco e miro a foto que Rui tanto encarou. Numa repentina força de vontade, levanto do chão e vou até ela, faço carinho no rosto de Otávio e sigo até o rack, abro a porta e deixo o porta retrato lá dentro junto dos outros. Fecho, deixando mais algumas lágrimas caírem, decidida a ousar viver de novo, basta saber se será com ou sem Rui.

Um passo de cada vez (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora