Capítulo 30

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Rui — 26 dias depois

Desde aquela detestável noite de domingo, quase um mês atrás, não tenho notícias de Liz. Não por falta de procura. Continuo indo à academia, mesmo sem treinar. Frequento o café diariamente ainda que sem comer nada. Também caminho na Orla  todos os dias antes do serviço,  já que não durmo mais tanto quanto antes. Não vou mais à sua casa todo dia porque dói toda vez que ignora a campainha, com certeza imaginando ser eu. Também vou à editora e fico alguns minutos em frente ao pequeno prédio, esperando ao menos ver Liz, em vão. Quero contar finalmente tudo,  meu maior pecado, minha vergonha. Eu preciso explicar a ela como e porquê fiz o que fiz. Se ao menos atendesse minhas chamadas.
Tadeu bate na porta do quarto, me tirando de meus devaneios.
— Pode entrar.
Ele vem até mim, preocupado.
— Filho, você está bem?
Digo que sim, mentindo.
— Já acabou minha hora de almoço?
— Há meia hora.
Eu me assusto, sentando depressa na cama.
Eu ando tão distraído desde o jantar na casa de Liz, já é o quarto dia que me atraso, não por estar dormindo, mas sempre, distraído, pensando nela. No que deve estar fazendo, onde deve estar, se um dia vai querer ouvir minha explicação.
— Vou me trocar e já vou. Desculpa, Tadeu.
Meu tio balança a cabeça e semicerra os olhos, deixando em evidência algumas rugas.
— Imagina, filho. Eu vim porque me preocupo com você.
Indo contra aos meus costumes, ponho a mão em seu ombro.
— Eu estou bem.
Digo, forçando um sorriso e me levantando da cama.
— Eu tenho uma coisa para você.
Ele me entrega um envelope pardo cheio. Abro e me espanto pela quantidade de dinheiro.
— Vinte porcento da venda da casa da sua mãe.
Sorri, satisfeito em começar a me devolver a herança que pegou emprestada quando a oficina estava indo mal enquanto eu estava preso. Tadeu é tão bom para mim, me trata como filho e me deu um lugar para eu chamar de casa, se eu não precisasse do valor, não o cobraria.
— Você não está querendo alugar um lugar? Agora dá.
Sorrio, ouvindo ele falar exatamente o que pensei. Vou usar esse dinheiro para isso. Cheguei a ver alguns apartamentos, mas com o orçamento que tinha, não gostei de nenhum, então resolvi esperar mais uns meses até conseguir um lugar que seja mobiliado e de valor justo. Aqui, nessa cidade, os preços são absurdos. Quanto mais perto do mar, mais caro. Sabendo por alto o valor do apartamento ao lado do de Sol, que havia me indicado antes de tudo, agora sei que posso pagar e pelo menos três meses à vista como é pedido. Com certeza vou visitar o prédio.
Tadeu espalma as mãos na minha direção.
— Não que que eu queira que vá embora, pelo contrário.
Ele dá de ombros.
— Mas acho que essa realização te faria um pouco feliz agora.
Sorri. Está certo, estou o mais animado que consigo para ver o apartamento.
— Você vai a uma visita comigo?
Ele dá um sorriso grande, aceitando.
Troco de blusa pela que usei de manhã no serviço e volto a ele.
Um tempo depois numa pausa no serviço, liguei para o proprietário do prédio que me interessa e marquei uma visita ao apartamento vago com seu corretor amanhã por ser o dia que ambos temos tempo.

***

Depois de estacionar a moto na frente da cafeteria, onde um dia Liz me informou que era seguro, Tadeu e eu atravessamos a rua e chegamos ao prédio simples, mas bonito, onde o corretor nos recebe.
— Sou Bruno, é um prazer recebê-los.
Conversei com o proprietário do prédio mais cedo e ele marcou uma visita ao apartamento disponível ao lado do de Sol e Felipe, ele só tinha esse horário, o que acabou sendo perfeito para mim e Tadeu.
Agradecemos e nos apresentamos.
— Vamos.
Nós o seguimos escada a cima enquanto ele se esforça para tomar fôlego e falar ao mesmo tempo.
— Pelo prédio ser antigo, não temos elevador.
Lamenta, eu também.
— Mas não se preocupe, os apartamentos foram reformados há pouco tempo.
Pela saúde do coração de Bruno, graças a Deus chegamos ao terceiro andar.
— Cada andar tem dois apartamentos, para que ambos tenham vista para o mar.
Explica, ofegante.
— E tem dois quartos, vocês vão gostar.
Tira a chave do bolso e abre a porta.
Assim que entramos, já estamos na cozinha que é separada da sala de estar por uma mesa embutida na parede baixa da cozinha. Ao lado tem a lavanderia, um cômodo pequeno, mas arejado e já com maquina de lavar. Na ligação com Ronaldo, o dono do prédio, ele disse que pelo valor do aluguel, os móveis eram inclusos, essa foi uma das coisas que mais me fez querer visitar este lugar, todos os outros que visitei, além de terem outros pontos negativos não dispunhavam de móveis e como não tenho nenhum, um apartamento não mobiliado não era uma opção para mim.
Depois de olhar discretamente para Tadeu, buscando aprovação e ele me fazer um joinha, Bruno nos leva para um pequeno corredor, no qual de um lado é o banheiro, de outro lado é o quarto principal com vista para o mar e maior do que imaginava e finalmente no fim do corredor, o segundo quarto.
Voltando ao quarto principal e olhando com mais atenção, tenho através da janela a visão perfeita para a cafeteria. Praticamente a mesma visão que Sol teve quando me viu com Priscila e contou a Liz. Ela não me contou quem foi que viu a cena, mas acabo de confirmar que foi sua irmã, minha provável futura vizinha.
— Vou deixá-los conversar a sós.
Bruno vai para a cozinha. Nem tinha notado que ambos me seguiram até aqui.
— E aí, gostou mesmo?
Pergunto ao meu tio.
— Claro, é muito bonito, tem móveis bons e todos eletrodomésticos necessários.
Sorrio, concordando com tudo.
— Você vai ser muito feliz aqui, filho.
Meu tio põe a mão no meu ombro.
— Nem acredito que posso pagar esse lugar.
Comemoro.
— Com o tanto de serviço que tem chegado para você na oficina. Vai poder até comprar.
Tadeu brinca, me divertindo. Saímos do quarto ao encontro de Bruno.
— Negócio fechado.
Ele sorri e me dá a mão.
— Meus parabéns.
Tadeu bate nas minhas costas.
— Esse garoto merece.
Fala de mim enquanto Bruno me entrega a chave. Caminhamos para a saída e ele abre a porta.
— Seja bem-vindo, Rui.
Assim que saio, agradecendo, encontro Sol com Benjamim no colo entrando em sua casa. Ela paralisa, me encarando. Provavelmente se culpando por ter me contado desse apartamento por pouco tempo vago ou só esteja espantada com minha barba grande, que diferentemente do cabelo, Tadeu não conseguiu me fazer cortar. Sol continua me encarando ainda sem reação, olha para Bruno, para Tadeu, para a chave na minha mão, para dentro do meu apartamento e então volta a olhar para mim. Depois de avaliar a situação, pegar ar para falar algo, mas desiste e entra em casa. Solto o ar, que nem sabia que estava segurando e me recompondo da situação constrangedora, por qual sabia que em algum momento iria passar, mas que não imaginava ser na frente do corretor. Bruno me encara.
— O marido dela sempre foi mais simpático.
Solta de repente, dando de ombros.
A piada seria cômica se a situação não fosse trágica.
Seguimos para as escadas com Bruno falando de como fiz um bom negócio, tentando fazer com que eu não mude de ideia por causa da minha vizinha. Ele não sabe que nada que Sol, Luiz ou qualquer outra pessoa fizesse, faria eu desistir de achar um lugar nessa cidade. Fugi para cá porque não tinha mais motivos para ficar na minha cidade natal, pelo contrário, agora jamais sairia daqui. Minha motivação para ficar é maior que todos problemas que eu possa enfrentar mesmo sendo baixinha.
Ao descer as escadas, agradecemos a Bruno com um aperto de mão e saímos o prédio ruma a casa de Tadeu para buscar minhas coisas.
Depois de me ajudar a embalar meus pertences nas minhas duas mochilas e em algumas sacolas, Tadeu me acompanha até sua varanda par se despedir.
— Tem certeza que não precisa de ajuda para limpar o apartamento?
Ele ignora ter visto que o lugar estava limpo.
— Não, mas obrigado, Tadeu.
Olho fixo para meu tio.
— Por tudo.
Seus olhos ficam marejados.
— Vem cá.
Diz e me puxa para um abraço. Beatriz vem até a porta com um saco pardo de padaria na mão e o estende para mim.
— Caso você tenha fome mais tarde.
Aprecio seu gesto e pego o que pelo cheiro eu já sei o que é.  Sanduíche da cafeteria que gostamos. Nosso lanche preferido, que resolveu uma discórdia quando eu não tinha nem uma semana morando aqui. Sorrio, agradecendo.
— Assim que eu arrumar tudo, quero que vão me visitar.
Imagino que consigo recebê-los com uma refeição legal já no início da próxima semana, visto que preciso fazer compras hoje.
Por fim me despeço dos dois e saio com destino a minha casa.
Chego rápido ao prédio já que não é longe da casa de Tadeu e do meu trabalho. Subo com todas as minhas coisas — as duas mochilas — e as coloco no chão para pegar a chave no meu bolso quando ouço alguém subindo as escadas.
— Ada.
Ela arregala os olhos, deixando o queixo cair, bem expressiva, diferente da irmã que mora aqui. Talvez só se assustou com o tamanho da minha barba. Ada pensa rápido e desce correndo. Eu a sigo.
— Por favor.
Ela para.
— Só me diz como Liz está.
Peço depressa. Ada hesita, mas se vira e olha para mim.
— Muito mal.
Diz devagar.
Eu sabia disso, mas vindo de sua irmã caçula que a viu há menos tempo que eu me dói mais.
Lembro do sábado retrasado, no fatídico jantar quando seu pai e Felipe me expulsaram de sua casa. Seu olhar decepcionado foi devastador para mim, penso nele o tempo todo e me sinto péssimo por tê-la causado tanta dor.
— Pede a ela para deixar eu explicar.
— Sem chance.
Ada bufa, se vira e volta a descer.
— Eu só quero explicar, por favor.
Eu a faço parar de novo. Ada respira fundo e de repente sobe os poucos degraus até mim.
— Então me explica primeiro.
Fico aliviado dela querer me escutar e nada surpreso em querer proteger sua irmã.
— Entra.
Mostro minha porta aberta. Ela passa por mim e eu a sigo, colocando minhas coisas para dentro e fechando a porta.
— Pode sentar, aceita um lanche?
Indico o sofá. Dou dois passos e chego à geladeira.
— Eu vou sentar aqui.
Aponta para o banco da mesa da cozinha. Pela sua entonação, ela sabe que o antigo morador daqui morreu entalado com um caroço de azeitona no sofá. Pego o saco pardo com o sanduíche que Beatriz me deu e coloco num prato recém lavado por mim. É tudo que tenho para servir já que acabei de chegar.
— Não quero comer nada.
Eu acho melhor não insistir. Coloco o lanche de volta no saco e me sento no banco à sua frente.
— Primeiro eu queria falar que tentei contar tudo isso a Liz.
Afirmo com a cabeça.
— Mais de uma vez.
Observo o rosto sério de Ada e noto que seu cabelo lembra pouco o de Liz. Seus cachos são mais curtos e miúdos, só o tom de castanho é o mesmo. A saudade dela é grande, mas me forço a voltar ao assunto.
Então conto a Ada que meu padrasto era agressivo com sua ex-mulher e continuou sendo quando casou com minha mãe. Ela tem algumas pequenas reações de susto e tristeza, mas permanece em silêncio.
— Eu fiz o que fiz depois de ver minha mãe ensanguentada no chão.
Externar isso é pior que lembrar da cena, o que faço todos os dias. Mas se for para ter o perdão de Liz, vale a pena passar por essa dor. Ela é quem não merece sofrer.
— Fiquei com muita raiva e o ataquei. Eu não sou maluco,  psicopatas nem mesmo agressivo. Eu só reagi.
Explico pausadamente.
Encaro a cicatriz na minha mãe direita.
— Mesmo sabendo que ele merecia e como merecia.
Enfatizo ainda mirando minha mão.
— Hoje eu queria não ter feito isso.
Nego, finalmente fitando Ada. Ela continua atenta.
— Se puder fazer com que Liz me ouça...
Respiro fundo.
— Ou pelo menos contar para ela.
Dou de ombros, desacreditado que atenderá meu pedido.
— Eu só não quero que ela guarde raiva de mim.
Nego com a cabeça.
— Ou medo.
Sussurro, confessando o meu.
Ada bate na mesa e se levanta abruptamente. Eu me espanto e meus olhos a acompanham.
— Já ouvi o suficiente.
Ela caminha para a saída, há dois metros da mesa. Eu levanto, abrindo a porta.
— Obrigado por me ouvir.
Ela acena com a cabeça e atravessa a porta.
— É... Eu preciso saber. Vai falar com Liz para mim?
Pergunto, sem querer pressioná-la, mas já fazendo isso. Ada olha em meus olhos e de repente me oferece um sorriso pequeno, mas genuíno. Ela se vira e vai embora. Suspiro devagar de alívio. Fecho a porta sorrio sozinho com uma pitada de esperança que eu já não tinha. Quem sabe Liz me perdoe por esconder a pior verdade do meu passado, quem sabe ainda assim queira ficar comigo. Nunca fui de sonhar alto, até agora.

***

Chegando a noite já terminei de me instalar no apartamento visto que eu não tenho muitos pertences. Depois de um banho quente e relaxante mesmo sem sabonete ou shampoo e da minha barriga roncar, vou a cozinha comer o sanduíche que Beatriz me deu e que por ventura Ada não aceitou. Imagino que esteja na hora de sair para fazer compras para minha nova casa.
Saio do prédio, agradecendo por não ter encontrado Sol ou Felipe por todo o percurso. Entro na garagem e pego a moto.
Não demoro para chegar ao supermercado. Então pego um carrinho de compras começando pelo corredor de produtos de limpeza, pego algumas coisas e sigo para o dos cereais, pego arroz, feijão e outras coisas. Depois procuro o hortifruti e escolho algumas frutas e legumes. Tudo em pouca quantidade porque agora estou morando sozinho. Passo também no açougue, aonde mais demoro já que tem fila. Depois reparo que ainda não comprei lacticínios nem os frios e vou para a padaria do supermercado. Saindo de lá, confiro minha lista mental e sigo para o caixa para passar as compras.
— Dinheiro ou cartão, senhor?
A moça morena pergunta.
Respondo e passo o cartão.
Logo coloco tudo nas sacolas mesmo não tendo prática. Equilibro todas nos braços até a moto e então as arrumo nas malas laterais, tomando cuidado para deixar os tomates e as bananas por cima.
Minutos depois chego em casa e arrumo as compras nos armários devidos. Terminado o serviço, vou rápido ao banheiro e depois para a sala. Eu me sento no sofá, ligando a televisão. Olho o céu através da janela e me questiono se Ada falou com Liz como pedi. Espero que sim, não aguento mais ser ignorado por ela, ficar longe dela. Eu queria contar sobre toda minha vida, para que não reste resquícios sequer de segredos.
Pisco, animado com a ideia que acabei de ter. Pego uma folha de um caderno que tenho e uma caneta e começo a fazer uma lista de tudo sobre mim ué seja importante para contar a Liz quando ela me der oportunidade. Dessa maneira vou me certificar de que não a escondo mais nada.
Assim que termino a lista curta, busco meu celular que está chamando em algum lugar dessa casa. Sigo seu som e o encontro na pia do banheiro.
Levo um susto quando vejo no nome de Liz na tela. Tento pegar o aparelho que escorrega e cai dentro da pia. Eu o pego rápido e atendo pouco antes da chamada cair.
— Liz.
Digo, ofegante.
— Ada insistiu para que eu ligasse.
Comemoro em silêncio.
— Está bem.
Sorrio e acabo me olhando no espelho, julgo a cena e volto para a sala.
— Pode falar então.
Respiro fundo e com calma repito tudo o que contei a Ada mais cedo. Sofrendo em cada frase. Liz nada responde.
— Fiz uma lista.
Confesso. Ouço sua respiração, confirmando que me ouve, atenta.
— De todas as coisas que ainda não te contei.
Explico, me sentindo um bobo insistente, mas não falaria se não achasse necessário.
— Quero que me conheça por completo, Liz.
Fecho os olhos e passo a mão no rosto, julgando ter sido muito apelativo para o momento.
— Está bem.
E desliga o telefone. Acho que eu tinha razão afinal, insisti demais por hora. Sua voz pareceu trêmula, deve ter se emocionado e não quis que eu percebesse por isso desligou sem se despedir ou só está brava mesmo e não quis mais ouvir minha voz ou então concordou em me conhecer por completo. Sorrio rápido. Essa é a alternativa menos provável.
Passo a mão dentre o cabelo curto não tão mais curto. Até minha barba cresceu esses dias. Mal tenho conseguido me concentrar no trabalho. E depois da mudança que fiz hoje não pude descansar no meu único dia livre. Com a mente baguncada, o melhor a fazer é arrumar o ambiente que estou. Isso costuma me trazer lucidez e certa tranquilidade. Mas como o já deixei o lugar em ordem, vou reparar o que não está. Sigo para o quarto, meu quarto e pego dentro do guarda roupa minha máquina de barbear. Vou ao banheiro e passo o pente dois em toda a cabeça e o um na barba, delineando as laterais com a gilete. Então tomo um banho e me sinto melhor. Sigo para o quarto e deito na cama, que acho dura demais. Estava acostumado com o colchão extremamente macio de Tiago e antes disso, um colchão mais duro que este. Como das outras vezes vou me acostumar, mas agora tenho a opção de comprar outro, se quiser.

Um passo de cada vez (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora