Capítulo 26

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Rui

Passei o dia inteiro ontem e essa manhã pensando em como Liz está, me resta só imaginar já que não atendeu minha ligações nem respondeu minhas mensagens. Dei um tempo para ela, mas não posso mais adiar vê-la. Aproveito que deu minha hora de almoço para ir à sua casa. Espero que me atenda.
Chegando à casa de Liz, vejo Ada na porta apontando a chave para abri-la, mas se detém ao ouvir o barulho da moto e me reconhecer. Desço rápido da moto e vou ao seu encontro.
— Ada, oi.
Suspiro rápido. Ela me encara, desconfiada.
— Parece preocupado. O que fez dessa vez?
Eu me assusto. Ela consegue ser mais direta que eu.
— O quê? Nada, não fiz nada.
Balanço a cabeça, procurando as palavras certas.
— Eu só vim ver como Liz está, depois de ontem à noite ela não me responde.
Miro o chão, triste ao lembrar de tudo que Liz aguentou ouvir daquela mulher.
— O que aconteceu ontem à noite?
Ada se incomoda e começa a afinar a voz já fina.
— Que eu saiba vocês iam sair!
Dá um passo em minha direção. Eu espalmo as mãos na sua.
— Nós saímos, mas a Cíntia apareceu.
Ada põe a mão na testa, desapontada.
— Ah, não! O que aquela bruxa disse?
Faz sentido Ada pensar isso daquela mulher, mas desconfio ter algum outro motivo além dela ser babaca.
— Ela sempre teve ciúmes de Liz com seu irmão.
Estava certo. Ela vira os olhos.
— O que eu sempre achei meio doentio.
Diz entredentes. Concordo.
— Mas me conta, o que Cíntia disse?
Não gosto nem de lembrar que ela chamou Liz de traidora e disse que tem nojo dela. Não vou falar isso em voz alta.
— Ela a humilhou. E Liz nem me deixou defendê-la.
Ada franze o cenho.
— E quando quis acompanhá-la até em casa, mandou eu sair do carro.
Concluo.
— Ah, coitada da minha irmã. Deve estar acabada.
Bufa, triste.
— Sabe por que Liz fez isso?
— Com certeza tomou como certo alguma coisa que a bruxa falou para ela.
Essa opinião me preocupa, visto que sua ex-cunhada acha que está muito cedo para Liz namorar de novo. Lembro que segui Liz até em casa, sem que ela percebesse, para ter certeza se ela chegaria bem. Só assim para ter conseguido dormir à noite.
— Será que eu posso vê-la?
Miro a chave em sua mão.
— Não sei se vai atender se eu tocar a campainha.
Ada hesita, mas aceita meu pedido para meu alívio. Pego a chave com ela e abro a porta, mas viro para trás quando me chama.
— Não demora, estou esperando aqui.
Sorrio, agradecido.
Liz tem sorte pela família que tem.
Entro devagar, tentando não fazer tanto barulho para que a acorde se estiver dormindo e tentando não ficar tão quieto para que não se assuste.
Liz não está na sala nem na cozinha ou banheiro, já que a porta está aberta, então sigo para seu quarto, passando pelo corredor, onde noto, sorrindo, que agora só tem duas fotos com Otávio, bem menos que da primeira vez que estive aqui. As fotos  deles dois foram trocadas pelas de sua família, bem grande, por sinal. Não conheço todos, ainda. Logo chego em sua porta e bato nela devagar. Liz não responde, então a abro. Ela tá deitada. Fico com pena de acordá-la, mas agora não tenho tanto tempo para ficar aqui como gostaria. Observo o quarto que já foi de Otávio também, me sinto invadindo o espaço de outro homem. Acho que agora tenho uma melhor noção de como Liz deve se sentir. Mesmo desconfortável, me sento aos pés da cama, fazendo Liz acordar. Ela esfrega os olhos e me encara, confusa.
— O que está fazendo aqui?
Levanto quase abruptamente de sua cama. Seus olhos me acompanham.
— Queria saber como estava.
Liz se esforça para sentar, reparo seus lábios pálidos.
— Como entrou?
— Ada.
Respondo de imediato.
— Pode me esperar na sala? Vou me trocar.
— Claro.
Saio do quarto que invadi, me sentindo intrometido.
Minutos depois, Liz aparece.
— Vou fazer café.
Ela passa por mim e segue rápido para a cozinha. Eu a sigo.
— Liz, são uma da tarde.
Ela me encara já enchendo a jarra da cafeteira, espantada. Tenta disfarçar.
— O que aconteceu com você na noite do parque?
Ela coloca a jarra de volta na cafeteira e a liga.
— E ontem o dia inteiro, por que sumiu? Fiquei preocupado.
Liz pega um pote com pó de café e despeja um pouco dentro da máquina.
— Se quiser me mandar embora de novo, eu vou.
Espalmo minhas mãos em sua frente.
— Mas só me garante que está bem.
Seus olhos castanhos que eu tinha finalmente me acostumado a ver sorrirem, ficam encharcados. Eu puxo seus braços finos e a abraço, então Liz se permite desabar. Não parece que se alimentou bem ontem, mas chora com força. Coloca todo seu peso no nosso abraço e a seguro forte. Ficamos assim por um tempo até Liz ter chorado o que precisava e começar a controlar a respiração, então se afasta de mim, secando o rosto. Pego em seu braço e a levo para o banheiro.
— Obrigada.
Liz lava o rosto.
— Eu sinto muito por tudo que teve que ouvir antes de ontem.
A máquina de café apita, então voltamos à cozinha.
— Não se preocupa comigo, Liz.
Sorrio e ela retribui o gesto. Então nos serve uma xícara de café.
— Pensei tanta besteira.
Ela segue para a geladeira.
— Por um momento eu realmente acreditei que não deveríamos ficar juntos. Pelo menos por um tempo.
Franzo o cenho. Liz fecha a porta da geladeira com uma caixa de leite na mão.
— Ainda bem que esse momento passou, não é?
Questiono, curioso. Liz despeja o leite em seu café e toma um gole.
— Acho que não conseguiria mais ficar sem você, Rui.
Liz sobe os olhos de sua xícara para mim devagar, a ofereço um meio sorriso completamente feliz. Vou em sua direção, tiro a xícara de sua mão e me aproximo, eliminando todo espaço entre nós.
— Liz?
Ada grita, entrando na casa, fazendo nos afastarmos rapidamente.
— Oi.
Ela responde a irmã, sorrindo.
— Pelo visto já está boazinha.
Ela provoca. Sinto meu rosto queimar e minha vez ainda nem chegou.
— Você demorou demais.
Ela aponta para mim.
— Eu já estava de saída.
Olho o relógio para enfatizar minha fala e percebo que já passei do meu horário de almoço.
— Eu tenho que ir.
Explico o motivo a Liz, que me leva até a porta.
— Obrigada por vir. Eu já estava enlouquecendo com meus pensamentos.
Dá uma risadinha. Eu sorrio.
— Que bom que está bem, Liz. Que bom que estamos.
Agora ela sorri. Dou um passo para trás , mas ela interrompe minha partida.
— Pode voltar mais tarde?
Levanto as sobrancelhas, animado pelo convite.
— Já ia mesmo te ligar para marcar um horário, preciso voltar a ilustrar. Daiane me avisou ontem que a máquina copiadora já está boa.
Semicerro os olhos.
— Então vou vir só para trabalhar?
— Podemos ver um filme.
Ela dá de ombros, tímida.
— Melhorou.
Eu me inclino e um dou beijo em sua bochecha.
— Até mais tarde.

***

De volta ao serviço, o tempo passa devagar. De manhã também não achei passar muito rápido, mas antes era por causa da preocupação e agora, ansiedade. Graças a Deus encontrei Ada na porta da casa de sua irmã, senão receio que Liz não abriria para mim.
Eu me distraio com o conserto do motor de uma Harley Dayvinson que me tomou toda a tarde. Adoro o desing desta marca e essa moto deu trabalho. Quando termino o serviço, noto que o sol já se pôs.
Depois de Júnior e eu fecharmos a oficina, não demoro a tomar banho e me arrumar e sigo para a casa de Liz.

***

Toco a campainha e Liz abre a porta, de testa franzida.
O que será que aconteceu agora?
— Oi.
Digo, receoso, enquanto ela me dá espaço para passar.
— Você não sabe o que aconteceu.
Fico preocupado. Instantaneamente começo a criar teorias. Cíntia pode ter vindo aqui hoje e batido nela ou talvez Liz descobriu o que por infelicidade e adversidades ainda escondo dela.
Ela se joga no sofá, eu a acompanho, mas com cautela.
— A mãe do diagramador ficou doente ele vai ter que ir para Minas Gerais, onde ela mora cuidar dela e... Adivinha?
Não ouso a tentar uma resposta.
— Seu voo é amanhã as seis da tarde. Só tenho até as dez para entregar meu trabalho para dar tempo dele adicionar nas cópias.
Vocifera. Meu queixo cai. Sei que Liz tem muito trabalho a fazer e agora em pouquíssimo tempo.
Fico espantado com a notícia, mas acho seguro ficar calado. Liz se levanta abruptamente.
— Eu tenho vinte e duas ilustrações para fazer até amanhã de manhã!
Ela fica de costas para mim, tapa a boca e dá um grito abafado. Percebo então que nunca a vi irritada. E depois de ficar assustado com sua reação, acabo rindo. Ao contrário de Liz, que fica ainda mais irritada, mas agora também por culpa minha. Logo me recomponho. Ela anda de um lado para o outro. Suspiro baixo, finalmente disposto a iniciar um diálogo.
— Daiane devia ter marcado com você muito antes que uma semana da estreia.
Exponho minha recente frustração.
— Agora com esse imprevisto, ela vai ter que adiar.
Liz olha para mim, desacreditada.
— Não posso pedir isso a ela. Eu prometi que faria meu trabalho com perfeição à essa inédita chance que me deu.
Levanto as sobrancelhas, incomodado com seu desgaste. Liz se senta de novo, bufando.
— Sei que não quer desistir, então comece logo a trabalhar.
Dou de ombros e recebo um sorriso sincero, do qual senti falta. Logo volta a ficar tensa.
— Mas vai demorar horas.
Passa a mão no rosto. Acaricio suas costas.
— Se precisar, eu fico a noite inteira aqui.
Seus olhos brilham, alegres. Liz se inclina e pega o controle sobre a mesa de centro. Eu a observo, curioso.
— Você pode ver um filme enquanto isso.
Sorrio e escolho um de heróis, que ela não é muito fã, para que não se distraia. Começo a assistir e Liz busca seu material no quarto, senta ao meu lado de novo e inicia os trabalhos.
— Separei as cenas que são do personagem sentado. Vou fazê-las todas agora.
Olho para ela e sorrio a fim de motivá-la.
— Você consegue.
E volto a prestar atenção no filme.
Quase duas horas depois, com o término do filme, Liz comemora me dizendo que conseguiu ilustrar incrivelmente sete cenas. Eu a parabenizo e seguimos para a cozinha para comer alguma coisa.
— Por que eu não cozinho enquanto você faz as cenas do personagem em pé?
Dou a ideia, que ela aceita feliz.
Resolvemos que vou fazer macarrão ao molho branco. Um prato que não é tão rápido, o que eu acredito que dará tempo suficiente a Liz para trabalhar bem.
Quase uma hora depois ela conclui mais quatro cenas.
— Vou precisar revisar alguns detalhes depois, mas grande parte de cada ilustração já está pronta.
— Metade já foi.
Digo, colocando os pratos na mesa. Ela se esforça para sorrir, cansada.
— Vai dar tempo!
Incentivo com ainda mais afinco. Liz alonga os dedos.
— Você ainda quer ir à praia?
Ela se anima enquanto põe uma garfada de macarrão na boca. Balança a cabeça, confirmando. Sorrio.
— O que acha de amanhã depois do meu trabalho?
Minha vez de dar uma garfada.
— Sim, por favor.
Vira os olhos, mostrando necessidade do passeio.
Não poderia ter momento melhor para relaxar tomando banho de mar do que depois de uma noite tão estressante e cansativa.
— Caramba, isso está incrível.
Liz elogia. Eu sorrio, satisfeito. Lembro do dia que minha mãe me ensinou essa receita. Eu estava prestes a me mudar e como ela tinha desistido de me convencer do contrário, me ensinou algumas receitas. Ela ia gostar de Liz.
Terminamos de comer e vamos para a pia lavar a louça.
— Como vai a procura por um apartamento?
Ela solta, enquanto esfrega a esponja no meu prato.
— Parada.
Respondo, pegando um pano de prato para secar a louça.
— Estou procurando na internet, mas nada me interessou ou está no meu orçamento até agora.
Dou de ombros, lembrando dos vários sites que tenho visitado esses dias.
— Vou começar a procurar também.
Sorrio para Liz, pegando o segundo prato de sua mão molhada.
— Sabe, antes de Daiane me ligar, eu coloquei minha casa à venda na internet.
Levanto as sobrancelhas, digerindo a boa notícia.
— O quê?
Pergunto para ganhar mais tempo.
— Eu me inspirei em você.
Dá de ombros. Fico quieto esperando o resto da resposta que precisa vir.
— E também...
Liz fica tensa.
— Quando Cíntia insinuou que minha casa era de Otávio, eu parei para pensar e...
Ela me encara, entregando o último garfo molhado.
— Era dele mesmo, era nossa. Agora preciso de um lugar meu.
Faz sentido para mim. Sem contar que não deve se sentir confortável comigo aqui assim como eu.
Depois de secar a louça, Liz a guarda e seguimos de volta para a sala, ela quer colocar outro filme para mim.
— Preciso que fiquei deitado para as próximas cenas, tudo bem?
Depois de um dia de trabalho, tudo ótimo. Sorrio.
— Eu já falei que adoro esse trabalho?
Faço o que me pediu. Ela ri e escolho a segunda parte do filme que vi mais cedo.

***

Acordo, confuso, na casa de Liz sem saber que horas pegamos no sono. A última coisa, da qual me lembro é de ter começado a assistir o segundo filme e dela sentada do meu lado, onde agora está deitada e dormindo. Olho o celular depressa para ver a hora e suspiro, agradecido pelos cinquenta minutos que tenho para chegar à oficina. Levanto, me despreguiçando. Talvez seja melhor eu ir embora antes de Liz acordar, pode não gostar de saber que dormi aqui. Mas, pensando bem, a última coisa que vi foi ela acordada, então deve ter me visto pegar no sono e se não se incomodou com isso, não se incomodaria em me ver aqui agora. Acho que devo fazer um café então ou seria um abuso? Afinal essa é a casa dela e de Otávio como me lembrou ontem. Levanto do sofá devagar, ainda ponderando oque devo fazer. Minhas costas reclamam do móvel com espumas macias demais. Enquanto me alongo, tento ver as ilustrações que Liz fez, mas preciso tirar seu material e lápis de cima dela para isso. Folheando seu caderno noto que ela conseguiu. Terminou as vinte e duas cenas. Vibro em silêncio, orgulhoso dela. Mas pelos leves borrões na lateral das últimas ilustrações, suspeito dela ainda não ter terminado. Acho melhor então acordá-la, já que tem menos de três horas para entregar seu trabalho na editora.

Um passo de cada vez (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora