Capítulo 24

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Liz

Mais cedo Rui me chamou para nosso primeiro encontro oficial. Ele finalmente terminou de colocar seus serviços em dia e por isso marcamos para daqui a pouco. Quando saía da academia — meia hora atrás — percebi um sorrisinho de Carla mais falso que o normal, um pouco até debochado. Eu evitei trocar olhares com Rui como fiz ontem por mais que ele não parecesse se esforçar para fazer o mesmo e por isso achei que ia dar certo esconder de Carla e dos demais, mas acho que não foi o suficiente.
Reuni coragem e liguei em chamada de vídeo para minhas irmãs ao mesmo tempo a fim de contar que conversei e me resolvi com Rui. Ignorei muitas mensagens de Ada desde ontem a tarde, já estava na hora de retornar. Na ligação, contei que fui chamada para o primeiro encontro oficial e elas vibraram, também contei sobre o atraso da estreia do livro de Daiane e retifiquei o dia para que elas não faltem. Sol contou como está sendo os últimos dias com um recém-nascido e um marido neurótico pela limpeza do bebê em casa. Também pude ver Benjamim que já cresceu absurdamente nos poucos dias desde quando o conheci. Ada fala das desilusões amorosas. Sol e eu demos risada do stand up que foi essa conversa, levando Ada a fazer o mesmo. Foi uma ótima conversa, mas não será suficiente. Logo precisaremos nos ver.
Agora estou em frente ao meu guarda roupa indecisa com o que vou usar. Rui disse para nos encontrarmos num parque radical que tem aqui na cidade, visto — como sempre — que recusei sua carona. E nesse parque, em especial, se pratica arvorismo, tirolesa, kart, dentre outras atividades, portanto não dá para ir de vestido. Procuro uma calça das que tenho há tempo, visto, mas não consigo fechá-la, o que é um sinal de que engordei. Corro para a balança no banheiro e vejo no visor que ganhei dois quilos nas últimas semanas. Dou alguns pulinhos de alegria, meu sorriso mal cabe no rosto. Em pensar que nem tem tanto tempo que eu voltei a treinar e a me alimentar melhor. Lembro de quando não comia tudo da marmita que minha mãe mandava e as vezes pulava uma refeição quando não pulava todas — nos piores dias. Mas hoje estou curada dessa depressão e mal posso acreditar que estou feliz de novo e ouso dizer que Otávio também estaria.
Volto ao meu quarto e troco a calça apertada por um shorts bege, que comprei com minha mãe. Escolho uma blusa preta de manga e faço uma maquiagem básica, ansiosa para sair de casa. Coloco uns acessórios e sigo para a garagem.

***

Depois de localizar Rui, por milagre com uma roupa não tão neutra, saio do carro e vou ao seu encontro. Só então percebo que está ventando e me arrependo por não ter vindo com outra calça.
— Oi.
Eu o abraço e ele parece confuso.
— Achei que seríamos mais discretos.
Rui me adverte, realmente confuso. Respiro fundo rápido.
— Eu acho que Carla nos notou mais cedo na academia, então...
Dou de ombros. Rui põe as mãos no bolso da bermuda bege.
— Não faz sentido tentar esconder se a maior fofoqueira da cidade já sabe.
Viro os olhos. Ele faz da boca, uma linha.
— Ela sabe desde terça-feira.
Finjo surpresa, colocando a mão no coração.
— Não! Será que foi porque você não parava de me encarar?
Rui dá risada. Seus olhos caramelos brilham nesta noite estrelada.
— Eu até fui ao banheiro para fugir de você!
Informo, rindo.
— É, eu percebi que você sumiu.
Ele me acompanha na risada, me olha de cima a baixo e sorri. Acho que é assim que faz elogios. Começamos a caminhar para o parque que está a uns vinte metros de nós.
— Então... Não está mais preocupada com o que podem falar de você?
É uma boa pergunta.
— Estou, mas...
Dou de ombros.
— Não quero estar, então estou tentando.
Ele acena em aprovação.
— Queria ser como você.
Agora eu faço da boca, uma linha, chateada por não conseguir mudar de personalidade só porque quero. Rui permanece em silêncio, então olho para ele, que está boquiaberta.
— Quê?
Por que parece desacreditado? Será que nunca ouviu um elogio à sua personalidade? Pensando bem e lembrando de que é mal encarado e antissocial, até que faz sentido ele estar surpreso.
— Você não se importa com a opinião alheia.
Explico.
— Quando saio com você fico esperando um xingamento.
Bufo.
— Sem ofensa, claro.
Olho para Rui, que ainda parece abalado.
— Eu falei besteira? Desculpa, Rui...
— Não, você não falou besteira.
Ele me interrompe.
— É que eu...
Limpa a garganta e chegando à entrada do parque, ele pega no meu braço, me fazendo parar.
— Tenho que te contar uma coisa.
Rui está tenso. Deve ser algo sério, talvez sobre sua mãe ou seu passado, que praticamente me esconde. Ele sempre foi reservado, mas também acho que esteja na hora de abrir mais para mim.
— Pode falar.
Sorrio, mas olho para a bilheteria do lugar e percebo que a fila está grande.
— Se importa em falar enquanto ficamos na fila?
Ele meneia a cabeça, ainda sério.
— Não, tudo bem.
Então seguimos para lá.
— Sei que não te contei muito sobre minha vida antes de vir para cá.
Ele começa, olhando desconfiado para os lados.
— Eu fiz...
Ele continua olhando para as pessoas, bem desconfortável. Toco seu braço.
— Você pode falar depois se quiser.
Realmente acho que não precisa ter pressa para contar o que quer que tenha acontecido em sua história infelizmente triste. Acabamos de começar nosso relacionamento, teremos tempo para falar sobre tudo e de preferência sem várias pessoas em volta.
Ele concorda, baixando os olhos.
— Você reparou que estamos combinando?
Tento animá-lo. Ele sorri, se dando conta de que contei um fato.
— Ficou melhor em você.
Avalio seu elogio.
— A cor?
Já que sou negra, bege destaca mais em mim. Talvez fique melhor mesmo. Rui encara minhas pernas.
— Tudo.
Isso, sim, foi um elogio.
Coloco o cabelo solto todo em frente de um ombro para tentar pegar um vento nas costas. Para onde ele foi afinal?

***

Minutos depois, chega nossa vez e Rui compra nossos bilhetes. Coloquei a mão na bolsa para mostrar que poderia pagar os meus, mas ele tocou na minha mão, me impedindo. Até parece que entramos em um lugar fechado, já que não venta mais. Depois de me abanar um pouco e Rui me entregar os bilhetes para guardar na minha bolsa, fomos para a fila da primeira atração escolhida por Rui. Ele parecia animado para andar de Kart. Confesso que também estava. Batemos corrida e apostamos um sorvete para o ganhador. Depois de pegar o jeito no volante diminuto, me superei. Não sei se a falta de prática em dirigir de Rui, me deu vantagem, mas venci com folga de tempo. Quando cheguei, olhei para as unhas, fingindo estar cansada de ficar esperando por ele. Em resposta, ele riu e me pagou uma casquinha. Também me contou que nunca pensou que um dia poderia andar de kart.
— Minha família era bem humilde na minha infância. Um dia meu pai fez um carrinho de rolimã para mim.
Seus olhos se iluminam contando sobre o pai.
— Foi o melhor dia da minha vida.
Rio de seu entusiasmo.
— Ele era mecânico como eu. Então o carrinho durou anos. Mas tive que deixar na casa de um amigo para vir para cá.
Depois de comer, fomos fazer o arvorismo. Era para o que eu mais estava animada. Atravessar uma plataforma fina de madeira presa em duas árvores há seis metro de altura é um aventura que estou ansiosa para viver. Esse parque é o único da cidade e sempre tive vontade de vir, mas nunca consegui. Já marquei com Ada e Sol e choveu, já marquei com meus pais e uma gripe me pegou, já marquei com Otávio e ele teve que cobrir o plantão de um colega.
Olho para Rui, que ouve com atenção as instruções do rapaz.
Era para eu ter vindo hoje, era para eu ter vindo com Rui.
Antes dele subir, fizemos outra aposta, outra casquinha. Disse que não quero ficar cheia antes de jantar e ele desdenha de mim, convicto de sua vitória. O que dirá quem vai ganhar será o tempo que fizermos para atravessar a plataforma. Quem for mais rápido, ganha.
Minutos depois, saboreio outro sorvete.
— Desse jeito, vou atingir rapidinho meu objetivo.
Dou risada, me gabando da vitória de vinte segundos de diferença.
— Reparei que engordou, mas não sabia se podia comentar isso sem te ofender.
Meus olhos brilham.
— Para uma pessoa que sempre lutou para engordar e ter um peso na considerado saudável, isso seria um baita elogio.
Sorrio, grata.
— Sabe, eu achei que fui bem.
Rui aponta com a cabeça para a plataforma.
— Você quase caiu duas vezes!
Rio alto.
— Como anda de moto, achei que tivesse mais equilíbrio.
Provoco.
— Eu também.
Admite enquanto passa a mão na barba semicerrada.
Rio de sua expressão decepcionada e o ofereço meu prêmio já quase pela metade.
— Não, não. Fique à vontade.
Ele espalma as mãos.
— Está tudo bem, pega.
Ele olha sério para mim.
— Se eu tivesse ganhado, não dividiria.
Por um momento, acredito que seria egoísta, mas mudo de ideia quando levanta sutilmente um canto da boca.
— Quase me pegou!
Ele ri por ter me enganado no momento em que bate um vento, que faz meu cabelo voar. Para não sujá-lo de sorvete, o seguro rapidamente com a mão esquerda, instintivamente levantando a outra, que vai direto ao meu queixo. Assim que o vento passa por completo, começo a me limpar com o guardanapo que veio com a casquinha, mas não tive muito sucesso, visto que Rui pega o guardanapo e faz o serviço.
Seu rosto fica perto do meu, seu cheiro amadeirado suave me invade. Quando me encara quase em câmera lenta, meus olhos vagam pelos seus e escorregam para sua boca, que encontra a minha. Ele me dá um beijo suave, carinhoso e mais doce que o normal graças ao sorvete de baunilha. Meus pés parecem sair do chão e o mundo, parar de girar. Ele me abraça e eu retribuo o gesto mesmo com uma mão equilibrando a casquinha. Tudo que ouço agora é o som do vento se tornando aos poucos mais forte, tudo que sinto agora é que estou no lugar certo, nos braços dele.
— Liz?
Uma voz feminina grita, me tirando do meu mais novo lugar favorito. O tom de repulsa é explícito, me deixando imediatamente envergonhada por saber de quem se trata. Olho para ela.
— Cíntia.
Seu rosto enojado faz eu me sentir uma criminosa, me desvencilho rapidamente de Rui, deixando cair meu sorvete que por pouco não o sujou. Os três encaramos o chão e então um ao outro até Cíntia dar um passo em minha direção.
— Quando Carla me contou que já estava namorando, eu não acreditei.
Ela nega com a cabeça. Meu coração acelera.
Elas sempre foram amigas, desde a escola, eu deveria ter tomado mais cuidado na academia. Ter trocado meu horário de treino ou ter parado de ir. Eu me sinto tão burra. Graças a mim Cíntia está aqui. Mas por mais que a cidade seja pequena, como ela me encontrou aqui no parque?
— Não acreditei que trairia Otávio com apenas dois anos de sua morte.
Suas palavras me ferem. Ferem meu amor por ele, nossas lembranças e fere meu corpo, já que logo me sinto fraca. Uma lágrima escorre do meu rosto.
— Isso não é traição.
Rui dá um passo a frente e eu o detenho.
— Por favor, deixa para lá.
Sussurro meu pedido. Ele mostra dificuldade em acreditar que eu quero ouvir o desabafo de Cíntia, mas a verdade é que não quero, só acho que talvez mereça.
Cíntia o encara dos pés à cabeça por um momento até voltar sua fúria para mim.
— E que ainda perdoaria seu assassino!
Deixa suas mãos caírem sobre as coxas e solta o ar, em deboche. Mais algumas lágrimas insistem em cair.
Ainda bem que não criticou Rui com palavras, posso ouvir tudo que tem para falar sobre mim, mas ela não o conhece portanto não teria direito de falar mal dele, ainda mais na minha frente.
— Dona Neuza me contou.
Sinto todo meu corpo trêmulo. Cíntia deve ter reparado minha expressão confusa porque continua a explicação de como sabe que eu o perdoei.
— Ela te viu chorosa conversando com um cara em frente à padaria esses dias.
As duas devem ter se esbarrado, as vezes esqueço que Cíntia não mora tão longe da nossa rua.
Ela se aproxima com os olhos lacrimejando.
— Acabou ouvindo ele confessar que matou Otávio e que você ainda o perdoou.
Diz entredentes. Minhas pernas bambeiam, mas consigo me manter de pé. Ela dá mais um passo em minha direção e Rui bufa, incomodado.
— Então eu fui à delegacia ver o que tinha acontecido e descobri que ele se declarou culpado.
Mais um passo, Cíntia aponta o indicador para mim.
— Nem deixou a família de Otávio opinar sobre o assunto. No mínimo deveria ter nos contado.
A polícia não ligou para ela nem para seus pais porque eu era a família de Otávio e por consequência, era suficiente para responder por ele. E por outro lado eu não contei porque não quis, Cíntia e dona Ester, sua mãe,  são pessoas dramáticas e também desde a morte de Otávio que não me procuraram para saber de mim, sequer atendiam minhas ligações nos primeiros meses, quando eu queria saber como estavam e falar sobre ele para tentar fazer passar um pouco da saudade se é que isso fazia sentido.
Cíntia se aproxima o máximo que dá, ficando frente a frente a mim. Eu me esforço para não abaixar a cabeça.
— Precisava falar essas coisas na sua cara. Por isso fiz questão de te procurar na cidade inteira já que não estava na casa do meu irmão.
Ela olha para Rui, expelindo repulsa.
— Dormindo com esse aí.
Volto a chorar, sem forças para reclamar ou para manter os olhos abertos.
— Agora já chega. Vá embora!
Rui vocifera. Ele ainda tem bastante força. Cíntia não se retrai mesmo ele tendo colocado o braço entre nós duas.
— Você me dá tanto nojo.
Eu abro meus olhos e a vejo me encarando. Toda sua raiva, seu rancor por mim me deixa cansada e de novo minhas pernas bambeiam. Cíntia passa por mim e vai embora, imediatamente abro a boca buscando o ar que não percebi que me faltava. Rui me segura antes que minhas pernas fraquezas de novo e procura um banco com os olhos.
— Ali, vamos.
Tentando controlar minha respiração olho em volta e noto todos encarando. Rui percebe.
— O que que foi?
Ele grita com todos. Olho em seus olhos.
— Eu quero ir para o carro.
Ele meneia a cabeça veementemente e ainda segurando meu braço, me acompanha para fora do parque.
Passo o caminho todo até o carro, derramando lágrimas em silêncio, pensando em todos os absurdos que Cíntia me falou, em todo seu desprezo por mim e o pior: em todo desrespeito que ela acha que tenho por Otávio. Rui abre minha porta, me ajudando a entrar e a fecha. Dá a volta e também entra no carro.
Num espaço sem julgamentos, sem olhos curiosas, finalmente consigo desabafar de verdade. Começo então a chorar com toda força que tenho. Grito de raiva de Cíntia e dor por agora voltar a achar que Otávio poderia ter raiva ou vergonha de mim. Rui me abraça forte. Eu continuo gritando, chorando e soluçando tudo concomitantemente. Mas depois de um tempo assim, finalmente me canso e recosto no meu banco, me desvencilhando com dificuldade de Rui. Noto seus olhos preocupados e de novo fico irritada, mas agora comigo mesma. Por ter encontrado alguém para substituir Otávio, para tentar esquecê-lo e de repente também sinto nojo de mim.
— Sai daqui.
Sussurro. Sua testa se franze.
— Eu posso te levar para casa.
Uma nova lágrima cai em meu rosto quente.
— Eu não preciso de você, eu não quero você.
Minto. Seu rosto fica tenso, parece magoado. Espero, triste, que sim já que preciso que vá embora.
— Sai daqui.
Imploro, já sem forças. Ele meneia a cabeça, concordando mesmo confuso. Abre a porta e olha para mim, não tenho coragem para encará-lo então viro o rosto. Ele sai e fecha a porta. Respiro fundo, buscando controlar minha respiração enquanto o vejo caminhar na minha frente em direção a sua moto. Cada vez mais se afastando de mim como deve ser daqui por diante.

Um passo de cada vez (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora