CAPÍTULO 4

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            Abro os olhos faltando cinco minutos para o despertador tocar. Meu peito ainda sente o peso do vazio. No reflexo da tela do celular, é notável o quanto estou acabada; as bolsas abaixo dos olhos se destacam de tanto ter chorado ontem à noite. Me arrasto para o trajeto do trabalho, este é um daqueles dias em que desejo sumir. Como eu queria poder não escutar a voz de ninguém hoje, estou completamente apática.

            Preencho algumas planilhas no trabalho com informações dos eventos da empresa, as horas passam se arrastando, grãozinho por grãozinho de areia cai da ampulheta na mesa do meu chefe, como se nunca fosse terminar de cair, mas logo quando bato os olhos no relógio da parede a frente, faltam apenas dez minutos para acabar meu horário. Desligo o computador e uso meus últimos minutos para ir ao banheiro.

            Meus pés fazem pequenos barulhos ao se encontrarem na calçada de fora, o dia está nublado. O tempo decidiu ser correspondente à tempestade que desabou ontem sobre mim, deixando tudo cinza. Não tenho planos de conversar com Gabriel hoje, mas antes que eu consiga escapar com os passos apressados, ele me aborda.

            — Hoje você vai visitar a loja, né, moça? — pergunta Gabriel, enfatizando o "né".

            Estou exausta e não sei o quanto isso é visível para os outros. Antes que eu possa formular uma frase negando a pergunta, ele completa:

            — Você disse que entraria na próxima vez que passasse. — Alfineta Gabriel.

            — Eu não me lembro disso — respondo fazendo-me de sonsa.

            — Por favor, você vai ajudar com a minha meta no trabalho.

            — Está bem — digo, por fim, derrotada pela pequena insistência, seria por um bom motivo.

            Entramos na galeria onde está localizada a loja. Gabriel usa o uniforme da empresa junto com uma jeans clara rasgada e um tênis branco. ele vai na frente e eu o acompanho logo atrás. Passo os olhos rapidamente sobre os óculos que estão à mostra no estabelecimento e logo me viro para Gabriel.

            — Aqui é a loja, fique à vontade.

            Seus braços, desprovidos de músculo, se abrem sobre o pequeno espaço da loja.

            — Você não vai me mostrar os óculos? — Pergunto indignada.

            — Não — Responde com a voz mais aguda, jogando a palma da mão para frente — meus coordenadores só precisam ver que estou trazendo clientes para a loja. Já sei que você não vai comprar nada mesmo! Ou vai?

            Olho para ele com as sobrancelhas arqueadas. A ousadia desse menino é impressionante.

            — Como é?

            — E você vai por acaso? — questiona ele.

            — Você estava me usando esse tempo todo? — pergunto com a voz risonha e com um leve tom de indignação, como se eu já não soubesse.

            — Não, não é bem assim — diz ele rindo também.

            — Certo, promessa cumprida, Gabriel. Agora posso ir embora?

            — Espera mais uns dois minutinhos aí, você não pode ir embora tão rápido, minha gestora está bem ali me observando. — Aponta para a gestora olhando para a nossa direção — Quer uma água? — Pergunta sorrindo com os lábios indo de ponta a ponta.

            Cruzo os braços, e minha boca se encontra entreaberta de indignação com a ousadia desse menino. Suavizo com um riso na face e olho para seus olhos; são de um castanho claro contrastando com seus cabelos de cor mais escura. Nossos olhares se encontram e logo desvio para a máquina de café ao lado.

            — Não tem cappuccino? Estou vendo a máquina logo ali. — Miro para a cafeteira.

            — São apenas para os clientes que compram os óculos da loja, o que não é o seu caso — explica em um tom debochado.

            Minha boca se abre involuntariamente. Como um rapaz tão abusado como aquele mexe tanto comigo? Desde o primeiro dia que nos conhecemos só nos alfinetamos, sendo magnético como cada alfinetada pinica em minha pele.

            — Se não me der o cappuccino, aí sim você pode ter certeza que nunca comprarei um óculos aqui — digo em resposta ao deboche.

            — Não me importo, a comissão aqui é baixíssima! Gabriel leva o copo de água em direção a sua boca, sem tirar os olhos de mim.

            — Ou eu posso conhecer a sua chefe que está sentada bem ali, e contar como a sua recepção aos clientes é excepcional, o que você acha?

            Xeque mate, idiota!

            — Está bem, vou pegar um cappuccino para você. O sentimento de vencedora é imprescindível.

            Gabriel nem tentou contestar meu argumento.

            — Obrigada — respondo.

             O cappuccino está doce como o clima naquele momento, nem parece o cinza no qual acordei pela manhã. Como ele consegue fazer isso? Logo em seguida, jogo o copo na lixeira ao lado e digo que preciso ir embora.

            — Está bem, aparece por aí amanhã — fala Gabriel sorrindo.

            — Vai sonhando — respondo, indo a caminho da saída deixando faíscas de quem com certeza voltaria.

Um Clichê por entre as Curvas do espelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora