02 | Ele falou de você

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JAY PENSOU QUE poderia dormir tranquilamente após os toques na parede que fizeram o choro do outro lado cessar, mas, na verdade, voltou quando estava se entregando ao sono. Seu corpo deu um pulo de susto com a altura do choro e ele se sentou sobre o colchão não tão macio da cama, dando mais três toques na parede. Desta vez, nenhuma pergunta foi feita, nenhum conselho foi dado, apenas fez o som ir embora para que pudesse tentar voltar a dormir.

Para sua sorte, não haviam bolsas escuras abaixo de seus olhos pela manhã, denunciando que sua noite não havia sido das melhores. Tentou parecer ainda mais apresentável do que na entrevista do dia anterior para seu primeiro dia de trabalho e saiu, aproveitando que tinha tempo suficiente para andar sem pressa até a cafeteria, não precisando se esgueirar entre o cardume de pessoas na faixa de segurança, nem esbarrando nas latas de lixo da calçada ao lado do poste de luz.

Enquanto saía do prédio, um menino do outro lado da porta de vidro empurrou a porta com força sem prestar atenção a sua frente, atingindo o ombro de Jay. Ele reclamou com o garoto loiro que usava roupas inteiramente pretas, o capuz do moletom cobrindo boa parte de sua cabeça, camuflando o fio preto do fone de ouvido.

- Ei, toma cuidado, garoto! - ele franziu as sobrancelhas e desviou do loiro para sair do recinto.

- Não enche. - rebateu com uma voz grave.

A música em seu fone de ouvido era tão alta que Jay podia ouvi-la mesmo estando a uma distância considerável, acreditando que o garoto poderia desenvolver problemas de audição.

O americano bufou sobre a má educação do loiro e seguiu seu caminho até finalmente chegar na cafeteria, sendo recebido pela mesma garota da entrevista, que lhe entregou um avental preto com um forte cheiro de amaciante.

Ao entrelaçar as tiras do avental atrás do corpo para afirmá-lo, sua tarefa era ficar atrás do balcão ajudando outro funcionário com os clientes que fossem chegando, anotando pedidos, recebendo pagamentos e tentando ajudar seu colega a preparar algumas coisas quando fosse necessário.

Ele se posicionou e repousou os cotovelos sobre a madeira branca do balcão, esperando que algo acontecesse. Uma movimentação ao seu lado chamou sua atenção, fazendo-o virar apenas o rosto.

Um garoto de fios castanho-claro ajeitava o avental, desamassando-o com as duas mãos. Ele percebeu o olhar de Jay e sorriu abobalhado, coçando a nuca com uma mão e estendendo a outra na direção de Jay.

- Jake! - ele apenas mencionou seu nome - Espero que possamos fazer um ótimo trabalho, mate!*

Jay arqueou uma sobrancelha, meio hesitante em apertar a mão do rapaz que agia como se fossem íntimos. Percebeu o sotaque engraçado e a expressão pela qual havia sido chamado.

- Você não é daqui, certo? - Jay arriscou perguntar.

- Sou da Austrália. - explicou.

Jay então se lembrou de onde se familiarizava com o nome, Heeseung havia dito algo sobre Jake na conversa em que tiveram, provavelmente sobre ter uma queda pelo australiano que, honestamente, parecia ter um parafuso a menos. Mas, tirando isso, Jake era legal e gentil, mesmo que um tagarela de primeira. Fez algumas perguntas a Jay, falou sobre si, sobre sua vida, seus gostos, desgostos, e só parou quando um cliente adentrou o estabelecimento, mantendo-o ocupado com a tarefa de recebê-lo.

Enquanto Jake conversava com o cliente para saber qual seria o pedido a ser realizado, Jay observou as pessoas passando através dos vidros da cafeteria, tão rápidas que mal conseguia decifrar o que estavam sentindo, sequer imaginar de onde vinham ou para onde iam.

- Jay, pode me ajudar aqui? - o australiano puxou o americano de seus pensamentos filosóficos.

As pontas frias dos dedos de Jay foram espertas em ajudar Jake. Não estava frio em Busan, o problema é que o ar condicionado da cafeteria parecia muito mais frio do que precisava, ocasionando arrepios no americano que lutava para não tremelicar e acabar fazendo uma bagunça no seu primeiro pedido como funcionário daquele local.

Jay segurou o mais firme que pôde aquele pires com a xícara de café fervente em cima para evitar derrubá-lo, ou ainda desmanchar o desenho contido numa fina camada sobre o líquido que Jake tivera feito como se fosse uma criança rabiscando com lápis de cor no jardim de infância. Pôs sobre a mesa onde o cliente estava sentado e deixou a mania de apenas acenar com a cabeça, temendo parecer grosseiro, dando lugar a uma reverência coreana.

Jake o observava com um sorriso grande, mas que não mostrava seus dentes, e seus olhos pareciam brilhar. Jay se perguntou como alguém poderia parecer tão empolgado numa manhã de terça-feira.

O americano se aproximou novamente, ficando atrás da estrutura de madeira branca.

- Moramos no mesmo prédio, sabia? Estou um andar acima do seu. - Jay lembrou desse minúsculo fato que julgou ser irrelevante, mas que fez Jake abrir a boca surpreso.

- Sério? Isso é legal, na verdade. Não te vi lá, faz pouco tempo que se mudou?

- Sim. Anteontem, para ser exato. - explicou - Também não te vi lá, mas Heeseung falou de você.

Jake o olhou com curiosidade e escorregou os braços no balcão, aproximando-se de Jay.

- O que ele falou de mim?

Jay tinha certa dificuldade em formular mentiras com rapidez, ainda mais quando estava cara a cara com a pessoa enquanto ela olhava em seus olhos, aguardando ansiosamente uma resposta.

- Ahn, ele disse... que... - desviou o olhar, tentando pensar em algo para não continuar gaguejando - que você é muito legal, e quer ser seu amigo.

Não queria ter a inconveniência de revelar algo dito a ele, provavelmente em segredo, então revelou apenas a metade. Esperou que aquilo ajudasse Heeseung a se aproximar de Jake, mas não queria ser o cupido particular de ninguém.

O resto do dia foi tranquilo, e Jay se perguntou se seria assim sempre, nada muito corrido. No fim, a companhia de Jake não foi ruim, e ambos voltaram juntos para o prédio depois de limpar a cafeteria e fechá-la.

Jay subiu para o andar de cima e encontrou Heeseung no corredor, com as costas escoradas na parede enquanto mexia no celular, sorrindo gentilmente ao notar a presença do americano.

- Descobri que Jake é meu colega de trabalho. Contei a ele que você queria se aproximar e, do jeito que ele aparenta ser, tenho certeza de que não vai demorar a acontecer. - Jay revelou, fazendo Heeseung arregalar os olhos.

Essa reação o fez pensar que Heeseung havia ficado bravo, mas logo um sorriso se estampou no rosto do garoto de cabelo esverdeado.

- Isso é demais! Valeu, vizinho. - ele deu um soquinho amigável no ombro de Jay.

- Hoje de manhã um garoto me deu uma portada. - o americano estendeu a conversa - Ele estava todo de preto, como se tivesse voltado de um funeral.

- Riki. -- Heeseung balançou a cabeça de um lado para o outro.

Jay então lembrou que Heeseung também havia falado do adolescente rebelde que vivia estourando músicas de rock até o talo no andar de cima, não importava o horário que fosse.

- Vou voltar agora. Obrigado de novo pelo lance com o Jake. Até outro dia! - ele sorriu e acenou, entrando em seu respectivo apartamento.

Jay esqueceu de mencionar que a pessoa do quarto 237 ainda atrapalhava suas noites de sono com aquele bendito choro. Pensou que se Heeseung tivesse escutado, teria comentado isso entre o diálogo. Deu de ombros e voltou para seu quarto, torcendo para que pudesse dormir sem precisar ficar acordando assustado no meio da noite.

[...]

N/A: *Mate em australiano é usado para se referir a um amigo, companheiro, colega.

quarto 237 • jaywonOnde histórias criam vida. Descubra agora