Katriel
Eu segurei a chave que Aquiles me deu na palma da minha mão e apertei tão forte que deixou marcas. Os remédios não estavam funcionando mais. Não como antes- o que é de se esperar quando você usa a mesma coisa por tanto tempo. Se eles estivessem funcionando como deveriam, eu estaria dormindo. Apagado, anestesiado. Se eles estivessem funcionando, eu não estaria deitado na cama no meio da madrugada encarando o teto, lutando contra os flashbacks e segurando aquela droga de chave como se ela fosse explodir. Era só uma chave. Eu não sabia porque estava reagindo daquela forma. Eu queria ir até o quarto de Aquiles e o socar. E depois o abraçar, bem forte. Eu queria fazer muitas coisas, e isso incluía gritar com Aquiles por sequer ter tentado me fazer sentir acolhido aqui. Não era culpa dele, eu sabia. E no fundo, bem no fundo, eu queria deixar a esperança tomar conta de mim. Queria acreditar na oferta de paz de Aquiles, no gesto de confiança. Mas eu me lembrava claramente o que havia acontecido da última vez que resolvi confiar em alguém. Da última vez que alguém me acolheu, da última vez que entrei em uma casa e pensei que poderia descansar. Que estava seguro.
Eu queria não lembrar. Queria não lembrar do Katriel que eu um dia fui- a criança inocente que foi encontrada na rua por um adulto que prometeu segurança. Eu estava sozinho, e devastado. Sem minha mãe, sem minha irmã, completamente sem esperanças depois de ser adotado e devolvido diversas vezes. Quando eu fugi do orfanato, havia desistido de qualquer esperança que poderia haver dentro de mim. Eu estava conformado que iria morrer ali, nas ruas, lutando por comida, lutando por sobrevivência. E então Flávio apareceu. E me prometeu todas as coisas que eu estava desesperado para ter: uma casa, uma família. Segurança. E eu acreditei. Eu caí em todas as suas mentiras. Ele foi bom, por um tempo. Para me conquistar. Me deu um quarto, brinquedos, pelúcias, uma babá que cuidava de mim enquanto ele estava no trabalho, me colocou na terapia, me ensinou a ler e a escrever e, pela primeira vez na vida, eu tinha um pai. E, então, quando os abusos começaram, eu confiava nele o suficiente para acreditar que o errado era eu -por me sentir estranho, por pedir para ele parar. Que eu estava imaginando coisas, e que ele me amava e nunca me machucaria de propósito. Ele foi bom, até não ser, e, quando eu percebi, já era tarde demais para escapar.
Eu precisava dormir. Eu precisava parar de pensar naquelas coisas, mas toda vez que eu fechava os olhos era como se ele estivesse ali, com as mãos ao redor da minha garganta, no meu corpo, no meu cabelo.
Sentei na cama, a garganta apertada. Percebi que todo meu corpo estava tremendo, e estava ficando difícil respirar. Tentei levantar e procurar mais remédios — eu não importava se a dose era perigosamente alta, eu só queria fazer aquilo parar —, mas levantei e imediatamente meus joelhos cederam. Me apoiei na parede, mas caí no chão. Tudo rodava. Eu não conseguia me mexer. Era como se as paredes estivessem fechando ao meu redor, como se tudo estivesse sumindo.
De repente, eu estava no meu quarto de infância novamente, na casa de Flávio. Eu estava no meu quarto, e era apenas uma criança, e implorava para ele parar.
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Reminiscência [LGBT]
RomanceAquiles sempre sonhou com as coisas ruins antes delas realmente acontecerem. Após conhecer Katriel, um stripper misterioso, ele sonha com o garoto sendo brutalmente assassinado. Ao se aproximar de Katriel para tentar impedir a tragédia, Aquiles se v...