Estou sendo empurrada para fora de casa, meus pés quase não conseguem acompanhar a velocidade e a violência com a qual sou guiada pelos corredores da mansion. Se ao menos eu pudesse enxergar por onde piso, mas um par de mãos bloqueia minha visão e tudo que tenho são umas lufadas de ar quente bem ao lado do meu ouvido esquerdo e um corpo que me empurra ofegante, me deixando sem a menor escapatória. Ainda não consigo identificar a origem de tanta euforia. Pelo menos, para a alegria dos meus pais, um dos herdeiros dessa família é algo além de apático, e definitivamente não sou eu.
Durante o caminho percorrido de forma trôpega, sem ao menos suspeitar para onde estou sendo levada, reflito sobre a relação que tenho com o indivíduo atrás de mim. Apesar de compartilharmos boa parte do nosso DNA, o mesmo lar e a mesma criação, temos personalidades tão distintas que se não fosse o vínculo sanguíneo, muito provavelmente não nos encontraríamos nessa existência. Aliás, será mesmo que filhos dos mesmos pais recebem a mesma criação? Cada filho que chega encontra pais e/ou mães diferentes. Richie é mais velho do que eu. Além de ser o primeiro filho, muito desejado e esperado, Richie é homem. Foi criado a imagem e semelhança de nosso pai, que por sua vez é britânico. Meu irmão usufrui de toda a liberdade que o ocidente pode incutir no inconsciente de um jovem rapaz e aprende todos os ofícios de Robin, o patriarca de nossa família. Enquanto eu, embora amada desde o primeiro minuto em que tomaram conhecimento da minha existência, ainda no ventre de nossa mãe, não fui esperada com tanta ansiedade assim, nem mesmo planejada. Sim, meus pais queriam o segundo filho, mas como é muito comum de segundos filhos, estes vêm quando os pais estão relaxados e com expectativas mais tranquilas, menos eufóricos. Ninguém ficou olhando testes de gravidez para saber se eu viria naquele mês ou no seguinte, ninguém ficou comprando toda a roupinha que via pensando na minha chegada. Já haviam garantido o primeiro, já tinham vivido a expectativa da parentalidade, não estavam tão efusivos, a espera de um bebê já não era novidade. Na verdade, segundo o que contam, estavam tranquilos e curtindo os primeiros anos de Richie quando me conceberam. Eu cheguei assim, despretensiosa, sem alarde. Então, foi nessa expectativa morna, mas nem por isso com menos amor, que eu nasci. E foi nessa mesma temperatura que fui criada através dos anos que se seguiram. Talvez tenha me esquecido de mencionar, mas que se o leitor for astuto já notou, que vim mulher. A menininha do papai, que muito embora não tenha sido pensada para suceder os negócios da família, fui e sou mimada de todas as formas que um ser humano pode ser mimado. Sobre nossa mãe, ela é tradicionalmente tailandesa, e esta é a parte enfadonha da minha história. Espero não entediar o querido leitor quando chegar a hora de falar sobre esse lado da família mais adiante.
Prosseguindo... De habitantes naquele momento, a mansion abrigava apenas nós dois. Na maior parte do tempo, aquele espaço era tão inabitado que ter algo enormemente vazio daquele jeito era a forma mais sutil de sinalizar para os outros o quanto de recursos sobrando possuíamos. De empregados havia sempre mais gente do que os 4 moradores (mamãe, papai, Richie e eu), mas depois os apresentarei de modo mais devido. Como eu nasci em uma tarde úmida e fria de inverno, meu aniversário acontecia sempre nas minhas férias de final de ano, agora, aos 20 anos, nas férias da faculdade. Mais especificamente em dezembro, 5 de dezembro. A essa altura, o gentil leitor já entendeu que estávamos sozinhos, eu e Richie. Meus pais chegariam em casa mais tarde para jantarmos em família. Meu pai passava o dia na empresa, fosse aqui em Londres ou na sede em Bangkok. Minha mãe, como uma sombra, vivia para acompanhar o homem que a conquistou no final dos anos 90 em uma de suas visitas a capital tailandesa.
Mas onde é que eu estava mesmo? Ah é! Me segurando pelos corredores da mansion de papai. Entre um tropeção e outro, que por pouco não me levavam de encontro as tábuas que, provavelmente estavam perfeitamente polidas (caso o leitor não se lembre, as mãos de Richie cobrem meus olhos), do assoalho, continuei divagando sobre nós dois. Apesar das diferenças irretocáveis, eu e meu irmão mais velho somos muito próximos, nutrimos sincera admiração e respeito pelas habilidades um do outro, e falamos sobre tudo também, sem reservas. Sinto que Richie é a pessoa que mais me acolhe e onde encontro verdadeira escuta sem julgamentos. Por mais irritante que ele seja as vezes, adoro esse tipo de momento com ele. Enquanto penso nisso, um sorriso fácil se forma no meu rosto, mas tão fácil se forma, também se desfaz quando, no mesmo instante, tropeço atravessando aquela enorme porta preta, bem estilo inglês, o leitor conhece? Nesse caso, a porta de casa intimidava qualquer um que chegasse perto, tamanha opulência e requinte. Bom, qualquer um que não fosse um Armstrong. Mas vamos em frente. Meu algoz finalmente me solta, me livrando daquela situação quase humilhante. Assim que meus olhos se encontram livres e nada mais bloqueia minha visão, vejo meu irmão saltitante do lado de uma Porsche 911 Carrera T preta. Quem narrou o modelo nos mínimos detalhes para mim foi Richie, eu não entendo nada de carros. Na verdade, estou sendo injusta, eu entendo sim, mas de dirigi-los.
- Feliz aniversário, sis. O papai que pagou, mas euzinho que escolhi. Mais moderno e muito mais legal que o meu. To doido pra dirigi-lo. Ok ok, ele é seu, mas depois eu quero dar uma voltinha nele também.
O leitor lembra que é meu aniversário? Pois bem, eu estava me deparando com o presente. Há 3 anos possuo carta e nosso pai quis me mimar com esse veículo tão emblemático já que agora dirijo sem bater e sem levar tantas multas. Emblemático pois Richie também ganhou a sua Porsche quando fez 20 anos. Enfim, o carro realmente é lindo e moderno, me empolgo e corro para a porta do motorista tirando meu irmão do caminho.
- Hahaha sai da frente Richie, quem vai dirigir essa belezinha sou eu, mais ninguém. Mas você pode se sentar no banco ao lado, eu deixo.
De soslaio noto uma expressão exageradamente desconsolada no rosto de Richie enquanto ele caminha para a porta do passageiro deixando a do motorista livre pra mim. Nós dois entramos no carro. Dou a partida e saio cantando pneu e testando a aceleração daquela máquina. Pelo canto do olho vejo a cabeça do Richie afundar num solavanco no banco ao lado, numa expressão de pavor e profundo arrependimento de ter topado aquele passeio.
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O Preço do Sal
FanfictionÀs vezes o amor surge das situações mais improváveis. Chega sorrateiro em momentos que precisamos mudar, amadurecer, apenas para dizer a nós, falhos seres humanos, que, estávamos errados sobre alguns conceitos que entendíamos como corretos. Mas será...