Capítulo 6 - Tec tec tec tec

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Sinto meus olhos ardendo e lacrimejando enquanto observo curiosa os detalhes do rejunte. Nunca havia reparado nas imperfeições daquela parede. Franzo o cenho incomodada, mas por algum motivo muito bizarro não consigo desviar os olhos, que vai passando de pastilha em pastilha e para próxima.. Todos os dias cumpro esse mesmo ritual, choro enquanto caço pequenos defeitos entre o padrão daqueles azulejos verdes. E fico assim, com o olhar vazio, irritado e úmido, alheia a qualquer coisa que não seja os defeitinhos da parede a minha frente. A trilha sonora que embala aqueles momentos diários é sempre a mesma: "tec tec tec tec". De repente uma ardência que não vem dos olhos me desperta daquele transe e olho para baixo, percebo espantada a tábua de madeira manchada de vermelho vivo. E numa fração de segundo a confusão se desanuvia, o sangue é meu, só pode ser. Afinal estou a cortar cebolas.

Pego o pano de prato e enrolo no dedo de forma instintiva. Arrasto a cadeira da cozinha com o corpo e sento suspirando e me sentindo frustrada. "Acho que deveria ter sido mais paciente quando mamãe tentou me ensinar alguns pratos." Eu tinha a impressão de que nada saía como o planejado, o frango quase nunca ficava no ponto certo, e quando ficava, quem não ficava era o alho ou algum outro legume. Tentei alguns pratos simples assistindo pelo youtube mas não estava me saindo a dona de casa que Heng merecia e que eu queria tanto me tornar. Olhei meu dedo estampando no rosto uma careta de dor e continuei refletindo. Aparentemente nem os legumes eu sei cortar, e agora tem esse sangue no pano de prato para eu lavar. Novamente sou desperta das minhas divagações, mas dessa vez pelo apito da panela de pressão. Pois é querido leitor, audaciosa eu, não é? Tudo bem, sei que você começou a rir da minha desgraça no meu capítulo anterior.

O meu marido, ah! coitado dele, era minha cobaia. Me elogiava e dava algumas dicas de melhoria, embora eu suspeite de que ele consiga a proeza de conhecer menos de cozinha do que eu. Mas o que o amor não faz, não é? Ele comia e me incentivava a continuar, e de forma muito delicada, às vezes, perguntava se eu não gostaria de alguma ajuda. Coitado, não devia estar aguentando mais. Mas eu queria insistir, deixar o Heng bem alimentado era o meu papel, certo? E se eu não pudesse cozinhar, faria o que? Não havia muito com o que me ocupar. Eu lia, ia para a academia, mas isso preenchia no máximo poucas horas, e o resto do dia? Eu precisava me esforçar, até agora ele havia sido um bom marido, nada me faltava. A nossa vida conjugal não era das mais animadas, mas também estava longe de não existir. Me acostumei com os gostos de Heng, era fácil de lidar, poucas surpresas. Eu sabia sempre o que esperar. Na cama, ele era um homem com gostos simples. Normalmente ele me demandava mais aos finais de semana, mas se tivesse tido um dia frustrante ou estressante na empresa, também me queria no meio dela. Eu virei o seu consolo, onde ele depositava as frustrações e acabava se sentindo melhor, mais homem. Ele desabafava sobre o dia durante o jantar, e quando nos recolhíamos ele se deitava ao meu lado, tímido a princípio, e depois de um tempo passava a mão nos meus seios e ficava esperando a minha reação, eu sempre consentia e de pronto ele se encaixava no meio das minhas pernas. Eu fazia carinho em seus cabelos, correspondia os beijos e esperava paciente que ele terminasse, não costumava demorar. Alternava entre me beijar na boca, puxar um dos meus seios para fora da camisola e beijá-lo também e tirava antes de terminar, tombando para o lado e dormindo pesadamente. Tínhamos combinado em esperar para ter filhos, embora ele fosse louco para ser pai, queria aproveitar o meu corpo tenro e firme por mais algum tempo. Palavras dele. Eu o esperava dormir e ia ao banheiro limpar o líquido viscoso que ele despejava quase sempre na parte interna da minha coxa.

E assim os meses estão passando desde o casamento. As únicas quebras da nossa rotina são os eventos corporativos e os coquetéis de inauguração de um novo negócio que Heng me leva as vezes, quando a presença da esposa é bem-vista. Saímos para jantar de vez em quando, ele está sempre querendo conhecer um novo restaurante que algum amigo seu abriu, e desde que eu me recordo, até na nossa lua de mel, ele possui uma característica de pedir para mim o mesmo que pede para ele. Nunca perguntou. Não me incomoda, acho até que me poupa o trabalho de precisar ler o menu e decidir o que comer. E ah! E as coisas por aqui também mudam um pouco quando ele viaja à negócios. Não é tão frequente, e quando se ausenta é por poucos dias. Na última vez que isso aconteceu, no mês passado, chamei minhas antigas amigas de colégio para me fazer companhia à tarde. Uma amiga em especial, Nam, ficou para dormir. Nam era a amiga mais antiga que eu cultivava, e com frequência ela vinha me visitar, as vezes com Heng aqui, as vezes quando eu estava sozinha, como dessa vez. Ela sempre vinha me fazer companhia, as vezes passava até mesmo alguns dias comigo. Essa minha amiga, querido leitor, ah como éramos diferentes, e sempre achei que era essa diferença que nos unia, e a cada ano não apenas a diferença, mas a capacidade de nos acolher sem julgamento nessa diferença, nos unia cada vez mais. Nam era solteira desde que me lembro, um ou outro rolo aqui e alí, mas nunca a vi querendo se comprometer com ninguém. Segundo ela, estava esperando alguém mexer com ela de verdade, em suas próprias palavras: esperava se apaixonar. Enquanto isso, ia se distraindo por aí, palavras dela também. E assim, minha querida amiga usufruía bem daquilo que ela apelidava de liberdade. Uma parte minha a admirava por ser essa mulher independente, focada na carreira e que estava sempre envolvida em algum projeto. A outra parte torcia para que ela encontrasse alguém e desse algum proposito a vida. Eu sempre achei importante construir família, ter um homem ao lado para guiar seu caminho. Temia por minha amiga acabar sozinha e numa idade que nenhum homem de boa família a iria querer. Neste dia em especial, eu e Nam passamos a noite conversando e bebendo vinho, ela sempre trazia um. Ela me contava as peripécias com os inúmeros carinhas que ela ficava, e eu contei de como estava sendo o meu casamento.

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