O Segundo Dia

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Engfa estranhou a facilidade com que Charlotte adormeceu. Ela não  conseguiria mensurar o tempo, mas calculava algo como em torno de cinco  minutos. Cansaço, álcool na corrente sanguínea, ou apenas facilidade em  dormir. Esses eram possíveis motivos para que o corpo da morena se  entregasse ao estado de vigília tão rapidamente. E as razões para a  comandante estar acordada? Essas estavam no rol de incógnitas que  passaram a circundar a vida da loira.

Waraha mantinha-se à  esquerda, no hemisfério corporal onde, dizem os especialistas, está o  coração. Nesse instante tudo fez sentido. Ela observava Austin dormir de  bruços, os braços estendidos para cima e o rosto levemente virado para o  lado. A respiração, calma e silenciosa, como se ela descansasse em uma  daquelas paisagens bonitas que só vemos nos livros. A boca perfeitamente  cerrada, como se aqueles lábios grudados guardassem um segredo  inviolável.

Foi inevitável Fa se perguntar como cabia tanta  beleza em um corpo tão pequeno, mas de curvas suntuosas. A filha do  presidente parecia ter saído de uma pintura renascentista, indo parar  diretamente entre aqueles lençóis perfumados e macios. Era linda,  linda...

A comandante sabia que deveria dormir, porém não  conseguia, simplesmente não conseguia. Era errado estar ali e ao mesmo  tempo soava tão certo que a confusão mental quase a fez perder o foco do  seu objetivo no momento: não permitir que nenhum pesadelo ferisse a  madrugada da mulher ao seu lado; que os monstros que moravam embaixo da  sua cama, fossem embora para nunca mais voltar.

A mais nova,  então, instintivamente aproximou-se para depositar um beijo naquele  rosto inerte, inebriando-se com o cheiro doce que vinha de sua pele.  Amadeirado, frutal, cheiro de pecado que a fez ofegar.

Observar Charlotte dormindo era quase um dos espetáculos mais bonitos do  qual tinha conhecimento. Trazia paz, uma paz imensa, como se fossem  blindadas de todo o mal do mundo. E novamente as coisas fizeram sentido.  Deixaram de possuir um reles significado, para tomarem um rumo que  nenhuma das duas jamais sonhou que pudesse acontecer.

Waraha,  de repente, foi tomada por pensamentos desconexos sobre a vida da  herdeira presidencial. Não era de se admirar que ela fosse, por vezes,  fútil, amargurada, impositiva. Austin não tinha escolha. Sentia-se oca, e  esse é um sentimento difícil de explicar, que fica cravado com força em  nossa alma. Sua existência não tinha sentido, mesmo com o ambiente  mostrando exatamente o contrário. Ela possuía tudo o que o dinheiro  podia comprar, entretanto, não havia encontrado o essencial: a  felicidade plena.

Charlotte mostrou-se extremamente carente, e  ter manifestado essa carência foi tão difícil para ela - que a sentia -  quanto para a morena, que fora informada sobre o fato. O problema de uma,  sem querer foi transferido para a outra. A mais velha deveria decidir  deixar-se vencer por esse sentimento ou tomar as rédeas e lutar.  Contudo, seria necessário começar a tarefa de se conhecer e se aceitar.  Era preciso identificar os fatores que provocavam o acúmulo de emoções  negativas para remediá-los. E onde Waraha se encaixava nisso tudo? Ela  seria a cura para esse mal, seria o preenchimento tão aguardado, tal a  transbordar de sentimentos nunca antes conhecidos.

Engfa arriscou uma carícia nas madeixas negras, sem saber que, em retribuição,  ganharia um sorriso. Mesmo dormindo, Austin sorriu ternamente ao perceber o  carinho que recebia. Ali se dava uma troca mútua de generosidade e  afeto, algo que talvez não acontecesse se ambas estivessem acordadas,  com suas faculdades mentais em pleno funcionamento.

Engfa poderia permanecer em seu ato pelo resto da noite, mas não o  fez. Tomada por um repentino peso na consciência, ela levantou-se  sobressaltada. Aquela situação não seguia a direção apropriada e isso a  incomodou.

A Filha Do PresidenteOnde histórias criam vida. Descubra agora