O que Pode Tocar o Coração

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Até o ponto em que Dyanphen iniciou apontamentos completamente descabidos, fora de hora e dispensáveis para a ocasião, Charlotte sentiu-se relativamente bem durante o almoço. A alteração de seu humor deu-se de maneira tão brusca e repentina que, da necessidade de um medicamento para relaxar a tensão, passou o restante da tarde entre a sonolência e a solidão de seu quarto.

A morena não era mulher de ter compromissos que não fossem de negócios, sempre relacionados ao pai. Não tinha amigos, já que enxergava a dissimulação e o interesse em beneficio próprio, em todas as pessoas que se aproximavam dela. Imaginava que cada tipo agia de acordo com as frustrações que lhes atormentava, com seus objetivos egoístas, ansiando por sugar do seu poder aquisitivo, sua inteligência, seu carisma, sua felicidade pessoal.

Preferia afastar-se, isolar se do mundo, a ter que suportar sanguessugas talhando-lhe a pouca sociabilidade que ainda restara em si. Relacionamentos afetivos? Ah, esse âmbito é deveras complicado, talvez mais do que os outros. Depois de ter o coração partido com a separação indesejada e forçada do seu namoradinho da adolescência, Austin nunca mais se apaixonou.

Todos os rapazes que estiveram ao seu lado durante os anos que se seguiram não passavam de distrações. De alguns a mulher chegava a ter asco, outros apenas suportava. Não foram muitos namorados, e estes, eram sempre integrantes fúteis e vazios da alta sociedade, nenhum despertando sentimentos bons em Charlotte, nenhum sendo capaz de devolver-lhe o brilho nos olhos, o sorriso largo e sincero, as borboletas no estômago que se evidenciam diante da paixão, do amor.

A chama apagada nunca mais foi reacesa. Por mais que a morena dissesse que não, que imaginasse que o fato de estar e ser só, não lhe atingia sentimentalmente, isso sempre a incomodou. A felicidade ao lado de alguém especial, o famoso final feliz, não era só propriedade dos livros que lia, ou dos seus filmes prediletos; ela ansiava e queria aquilo para si, mesmo sabendo que estava fadada à solidão.

Charlotte fechou o livro que lia, mantendo-o em seu colo, quando ouviu batidas leves e espaçadas na porta do seu quarto. De cenoura franzido, levantou-se devagar, ao passo que retirava os óculos de seu rosto, repousando-os sobre a capa de 1984, em cima do criado-mudo. Enquanto ajeitava o seu roupão, tentava adivinhar quem a incomodava mesmo sob ordens de não o fazerem.

- Oh, Yha, alguém importante faleceu? – A mulher nada bem humorada, encarava a secretária que dava de ombros, já acostumada com a falta de traquejo e simpatia com que a filha do presidente tratava as pessoas por vezes.

- Desculpe-me. Sei que pediu para não lhe chamarem, mas é o sei pai. – A loira dizia calma, falava o mais devagar e suave possível, já antevendo a reação negativa de Austin. Uma espécie de tentativa de amenização.

- Aconteceu algo com ele? – O semblante de Charlotte transformou-se de enfurecido para preocupado em segundos.

- Não, em absoluto. Ele somente pediu para avisar que o jantar está servido e que a aguarda para fazer a refeição.

A vida atribulada com os excessos de compromissos – que remete à falta de tempo – e a negligência para com os que convivem entre si, são alguns dos responsáveis pelo abandono de hábitos simples por parte da família Austin, tal como uma refeição em conjunto. Algo banal tornou-se árduo, e falando em verdades, nenhum dos três demonstrava claro interesse em resgatar a tradição.

O Sr. Alexander tentou por vezes - instaurando o compromisso de sentarem-se à mesa pelo menos três dias da semana - retomar o que chamavam de "calor familiar". Não durou um mês o cumprimento do "acordo", cada um deixando de lado o que consideravam desnecessário dentro de casa, mas pregavam como sendo um princípio extremamente importante. Incoerência entre ações e verbalizações, em suma.

A Filha Do PresidenteOnde histórias criam vida. Descubra agora