devaneios

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devaneios

Tenho um sonho, como a princesa que sonha em deixar a torre. Sonho com um lugar distante, onde meus problemas me deixem, pela primeira vez, apreciar o pôr do sol. Tem bastante grama, um cachorro de porte grande, uma casa de tijolos, lareira, fogão a lenha e muita neve no inverno. Tem criança dando o primeiro passo no corredor, embrulho de natal por todo lado e farinha de trigo pela cozinha. Tem eu e você, os frutos do nosso amor e desenhos antigos que me levam de volta ao tempo antes de tudo piorar só para depois melhorar de novo. Por um instante, quase que consigo me ver sem essa arte de despejar dor em papel, e me sinto cruel e traiçoeira por dizer que gosto da visão. Em meu sonho, tem dor. Não posso ser tão iludida. Mas também tem o seu abraço acolhedor, o cheiro dos cabelos molhados das crianças, bolo no forno e tanto conforto que a paciência me escorre e quero ir já! Subitamente, toda dor desaparece. Tem bota de chuva, uma estufa onde passo minhas tardes, nossa caminhonete velha e muito macacão com o bolso cheio de terra. A gente dança na chuva sem pensar na gripe, colhe morangos cientes do quão difícil foi plantá-los e tornamos os narcisos que crescemos em buquês para o quarto. Tem muita pouca tela, muito pouco vício, muita pouca urgência. Mas, em compensação, tem muito daqueles silêncios sem tradução, pois já dissemos tudo que tinha de ser dito. Nesse meu sonho, sou tão mulher que, quando me olho no espelho, a estampa de meu vestido é Orgulho. Me pergunto quantos sonhos da adolescência realmente se concretizam. Vou viver pela esperança, sempre no aguardo, enquanto aos poucos aprendo a engatinhar em direção a vida que mereço. 

CASTANHO CASTANHOLAOnde histórias criam vida. Descubra agora