Alef ainda sentia o eco das palavras trocadas com o conhecido de Tullius. À medida que olhava ao redor, percebeu como muitos dos habitantes daquele vilarejo compartilhavam algo do velho viajante—um ar de resignação sábia, uma quietude que falava mais do que palavras. Era como se Tullius tivesse deixado um pedaço de si em cada um deles, um traço de sua própria jornada.
Com o peso do luto e da reflexão, Alef sentiu sua determinação solidificar. Era como se o velho tivesse lhe dado uma nova perspectiva sobre o caminho à frente, não com palavras, mas com o exemplo de uma vida bem vivida, que encontrou sentido no fim de uma estrada longa.
Na manhã seguinte, dirigiu-se à pequena taverna onde o proprietário o esperava, um homem simples, com olhos tristes, mas serenos.
— Sabia que Tullius não voltaria desta vez — disse ele, a voz carregada de uma melancolia silenciosa. — Falava dessas montanhas como seu destino final.
Alef permaneceu em silêncio por um instante, absorvendo as palavras. O fim de Tullius não o surpreendia, mas agora, ouvir a confirmação, tornava tudo mais concreto, mais pesado. Assentiu, sem encontrar palavras que correspondessem à profundidade do momento.
— Ele deixou o burrinho e a carroça para você — continuou o homem, entregando uma pequena chave. — Disse que sabia que cuidaria bem deles.
Alef pegou a chave, sentindo uma estranha responsabilidade cair sobre ele. Não era apenas um presente; era um legado. Havia algo de solene no gesto, e, apesar da dor, ele sentiu uma paz crescer, lentamente, dentro de si.
— Obrigado — respondeu, com simplicidade. As palavras pareciam desnecessárias, mas o silêncio entre os dois carregava o entendimento.
O proprietário lhe lançou um sorriso leve, quase paternal.
— Cuide-se, rapaz. O caminho é longo, mas acredito que você encontrará o que procura, mesmo que ainda não saiba o que é.
Com uma última troca de olhares respeitosa, Alef saiu e caminhou até a carroça. O burrinho, impassível, o observava com olhos calmos. Ao tocar o animal, uma conexão silenciosa passou entre eles. "Você e eu, companheiro", pensou ele, enquanto ajeitava suas poucas posses na carroça, preparando-se para partir.
Antes de ir, olhou uma última vez para o vilarejo. Não havia muitas lembranças ali, mas o tempo com Tullius e a jovem mulher que cruzara seu caminho deixou marcas invisíveis. Com um suspiro profundo, tomou as rédeas e partiu, deixando para trás o lugar onde o velho viajante encontrou seu fim.
O caminho adiante era solitário. O ranger suave da carroça e os passos compassados do burrinho eram os únicos sons que preenchiam a vastidão. O céu limpo parecia se estender para sempre, e a paisagem, desolada, refletia o vazio que Alef sentia por dentro. A estrada diante dele não tinha destino certo, e isso lhe causava tanto inquietação quanto alívio. Era como se estivesse suspenso no tempo, sem pressa de chegar a algum lugar.
Dias se passaram sem que Alef encontrasse uma única alma. A solidão, antes uma companheira ocasional, agora pesava sobre ele. O silêncio forçava-o a encarar seus pensamentos, a confrontar a morte de Tullius e o propósito incerto de sua própria jornada.
E então, havia a Bíblia. O objeto que Tullius carregava consigo até o fim. Por que um homem tão sábio e cético escolheria algo tão ligado à fé? Essa pergunta o atormentava enquanto caminhava, mas a resposta parecia sempre fora de seu alcance.
Quando a noite caiu, Alef decidiu parar. Montou um pequeno acampamento à beira da estrada, acendendo uma fogueira que estalava suavemente no ar frio. O burrinho descansava perto, e Alef, sentado à beira da carroça, pegou a Bíblia. Olhou-a por alguns instantes, sentindo o peso das páginas antigas.
Ele nunca havia dado importância à religião. Para ele, a fé era algo distante, quase abstrato. No entanto, ali, sozinho no escuro, a Bíblia parecia mais presente, quase viva em suas mãos. Lentamente, abriu o livro, permitindo que o vento virasse as páginas, até que seus olhos caíram sobre um versículo:
"Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei." (Mateus 11:28)
As palavras, simples, mas carregadas de significado, ressoaram em seu íntimo. Cansado. Sobrecarregado. Alef sentia essas palavras profundamente. Não era apenas cansaço físico; era um peso na alma. O fardo da incerteza, das perdas, da falta de direção. O que essas palavras poderiam oferecer? Como poderiam aliviar o que ele carregava?
Fechou o livro, pensativo. Talvez houvesse algo ali que Tullius entendia e ele ainda não. Um alívio que o velho sabia que Alef precisaria, mais cedo ou mais tarde. Alívio. A palavra ecoava em sua mente. Estaria ele buscando isso? Alívio para a dor, para a confusão que o dominava desde que deixara sua cidade?
A brisa fria da noite acariciava seu rosto, e Alef puxou o manto mais próximo do corpo. O fogo lançava sombras dançantes ao redor, e, por um momento, ele sentiu uma presença, uma sensação suave de não estar completamente só. Iter? Talvez. Mas não havia certeza, apenas um sentimento silencioso, quase reconfortante, observando à distância.
Com o versículo ainda em sua mente, Alef adormeceu, o som da fogueira e a promessa de alívio gravados profundamente em sua memória. Não sabia como, mas de algum modo, sentia que as respostas estavam mais próximas, apenas esperando para serem descobertas.
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O Caminho do Viajante
Fantasy"Para quem sempre trilhou caminhos aleatórios e viveu sem um propósito na vida, ser chamado para seguir um caminho específico não é fácil, principalmente quando é chamado por alguém que você nunca viu. Assim aconteceu comigo, após diversas perdas na...