Capítulo 14: No Vale das Sombras

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O vento cortante soprava incessante, levantando poeira árida da estrada deserta. O sol começava a se pôr, lançando sombras longas e sinuosas. Dias se passaram desde que Alef deixou as montanhas. O burrinho, seu fiel companheiro, continuava em silêncio, puxando a carroça sem pressa, enquanto o mundo ao redor parecia esvaziar-se de vida.

A escuridão da noite pairava ao redor de Alef, pesada e densa, enquanto ele caminhava pela estrada deserta. O vento soprava gélido, uivando como se carregasse consigo todos os gritos reprimidos de sua alma. Cada passo que dava era uma luta contra o impulso de voltar, de fugir daquele vale, que parecia feito de sombras tão vivas que pareciam segui-lo.

Ele respirou fundo e puxou o capuz para se proteger do vento. Seus dedos trêmulos tocaram a Bíblia, um legado de Tullius, como se, ao segurá-la, pudesse invocar algum resquício de coragem. Porém, o silêncio ao redor estava carregado, e ele sentia como se algo o observasse das profundezas da noite.

Foi então que, ao longe, ele viu algo distorcido na estrada: uma sombra que parecia se expandir e contrair, até tomar a forma de uma figura embaçada, quase espectral. Alef parou, sua respiração presa na garganta. Aquela figura parecia feita de pura escuridão, mas emanava um sentimento frio e aterrorizante. Com um calafrio, ele percebeu que não conseguia desviar o olhar.

A sombra começou a tomar forma, e ele se viu diante de si mesmo, um reflexo que não o olhava de volta. Era ele mesmo, mas coberto por uma expressão de puro medo, um terror paralisante. Alef sentiu suas mãos suarem, o coração batendo descompassado.

O reflexo falou, e sua voz era gélida, quase sussurrada:

— Por que você continua andando? Tudo o que te espera é o fracasso. O desconhecido... Ele te apavora, Alef. Você sabe disso.

O chão pareceu sumir sob seus pés, e ele sentiu-se cair, como em um pesadelo. Ele caía, uma queda interminável, e em seu peito ardia o medo – o medo de viver, o medo de existir, o medo do que não podia controlar. A visão de seu futuro, solitário e sombrio, o preenchia com uma angústia sufocante.

Suas memórias passaram diante de seus olhos, relembrando-o de todas as perdas, os fracassos, e a ausência de propósito. Tentou gritar, mas o som foi engolido pelo vazio.

— Você tem medo de tudo — murmurou a sombra, cada palavra ecoando como um trovão em sua mente. — Medo de viver, medo de seguir em frente. E é esse medo que sempre te prende, que te impede de lutar.

Alef lutava para respirar, mas o ar parecia escapar de seus pulmões. Ele fechou os olhos, sentindo o corpo tremer. Não queria ceder, mas o medo era esmagador, como se estivesse sendo soterrado por pedras invisíveis.

E então, a sombra sumiu, e ele se viu de volta na estrada. Respirava com dificuldade, o corpo cansado, como se tivesse realmente caído de um abismo. Ainda abalado, deu um passo hesitante, mas, antes que pudesse se recompor, ouviu outro som, um som de passos pesados que se aproximavam rapidamente.

De repente, ele viu alguém diante dele. Era ele mesmo, novamente, mas desta vez, havia uma fúria em seus olhos. Sua outra versão – sua própria raiva – o encarava com uma expressão selvagem, quase insana.

Alef engoliu em seco e tentou se afastar, mas o reflexo avançou, com um sorriso amargo e dentes cerrados.

— Você quer lutar contra tudo, não é? — gritou a raiva, a voz trovejando como uma tempestade. — Você quer culpar a todos, menos a si mesmo! E então? O que vai fazer agora? Fugir como sempre faz?

A raiva avançou, e Alef ergueu os punhos, mas sua raiva o golpeou antes que pudesse reagir. O soco o fez cambalear para trás, e ele sentiu o rosto queimar. A cada golpe, as palavras da raiva cravavam-se nele.

— Você quer vingança? Quer jogar sua dor no mundo? Então, venha e lute! — gritava a figura.

Alef sentia o desespero crescendo, enquanto cada golpe parecia acender algo dentro de si. O desejo de lutar, de retaliar, de soltar tudo o que estava preso há tanto tempo. Ele ergueu os punhos e revidou, mas, com cada golpe que acertava na figura, era como se atingisse a si mesmo. Sua raiva ria e gritava coisas que ele temia admitir.

— Você não passa de um covarde! — a raiva vociferava. — Covarde que culpa o mundo por tudo, quando sabe que o problema é você!

Alef sentia-se desmoronar por dentro. Era uma luta que parecia impossível de vencer, uma luta contra si mesmo. Até que, exausto e com o corpo tremendo, ele parou. A raiva desapareceu, deixando-o no chão, sozinho, machucado, com as próprias palavras ecoando em sua mente.

Ele se levantou com dificuldade, a respiração pesada. Estava fraco, ferido. O silêncio voltou a tomar conta do ambiente. Porém, desta vez, o silêncio era mais profundo, mais opressor.

De repente, ele se viu em um vasto vazio, uma escuridão sem fim, onde nem mesmo o som de sua respiração fazia eco. Era como se tivesse entrado em um abismo, onde o tempo e o espaço não existiam. E ele estava sozinho, completamente sozinho. Sua própria solidão se fazia presente, esmagadora, sufocante.

— Não há ninguém aqui, Alef — murmurou uma voz suave e melancólica. — Sempre foi assim, não é? Só você, com seus pensamentos, sua dor, seu medo. Sempre sozinho.

A solidão era fria e cheia de murmúrios, cada palavra carregada de desprezo. Alef olhou ao redor, mas não havia saída. Era um vazio sem fim, e ele sentiu como se estivesse sendo absorvido por ele. Tentou lutar contra o sentimento, mas quanto mais lutava, mais o vazio parecia preenchê-lo.

— Você vai ficar assim para sempre — sussurrou a voz, suave e cruel. — Ninguém vai te salvar, ninguém jamais veio. Você é apenas uma sombra no mundo, alguém que nunca será lembrado.

Ele gritou, mas o som desapareceu na vastidão, engolido pela solidão. A dor, o medo e a raiva acumulados formavam um nó em seu peito, e ele se ajoelhou, tremendo. Era verdade. Sempre fora assim, e ele temia que sempre seria.

Foi nesse momento, quando tudo parecia perdido, que uma luz tênue apareceu à sua frente, suave e acolhedora. Iter estava ali, como um farol em meio ao caos. A luz tocou Alef, e ele sentiu um calor intenso, uma paz que não conseguia explicar. Iter não precisava dizer nada; sua presença preenchia cada vazio, acalmava cada tormento.

Alef olhou para ele, lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Eu… eu não sei se consigo mais — confessou, a voz fraca.

Iter o olhou com compaixão, e suas palavras foram um bálsamo para a alma de Alef:

— Não precisa saber de tudo, Alef. Basta dar um passo de cada vez. Eu estou aqui, e sempre estive, mesmo quando você achava que estava sozinho.

A presença de Iter dissipou as sombras, e Alef sentiu o peso sair de seu peito, ainda que o vazio dentro de si ainda estivesse lá. Ele sabia, agora, que não precisava carregar tudo sozinho.

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