Família

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Ruas de El Paso, Texas – 21:11 hrs

Dor. Dor amarga. É o que emana das vielas daquela cidade e das vidas solitárias de cada um daqueles cidadãos.

El Paso está muito distante de ser uma das cidadezinhas mais bonitas dos Estados Unidos, principalmente naquela hora da noite. Distante a apenas 1.600 quilômetros da fronteira do México, é o refúgio para latinos, hispânicos e tudo o que não for considerado branco. À noite as luzes estouradas das boates refletem o seu vermelho e azul nas poças d'água da chuva passageira, corre um fluxo menor de carros e transportes coletivos nas estradas e os marginalizados buscam suas vítimas fragilizadas para oferecer os seus alívios momentâneos. Era nesse contexto de dor amarga que uma vida tão jovem se estabelecia, desiludida de sonhos e de esperanças. Numa pequena casa no subúrbio, com o teto retorcido e as grades envelhecidas, uma mulher de face cansada, pele caramelada e lindos cabelos ondulados esperava pacientemente pelo seu marido, esperançosa de que, naquela noite, ele não voltaria completamente embriagado e a deixaria dormir em paz. A porta fez o seu barulho convencional, todavia, ele estava acompanhado.

Ela veio recebê-lo. O barulho insaciável da chuva não permitia que apresentações fossem feitas com sucesso, e a mulher ficou sem saber o nome do jovem garoto acompanhado de seu marido. Somente sabia que ele tinha traços asiáticos, ela viu os seus olhos puxados pela pouca luz que emanava da janela. O pequeno cômodo principal da casa estava apagado, a luz havia sido cortada há pouco tempo, e, ao invés de ir pagar a conta, uma garrafa quase vazia encontrava-se na mão esquerda do homem alto e moreno que trouxe aquele garoto consigo.

— Maria — a voz rouca do adulto emanou, um sorriso evidenciou a sua barba por fazer. Como se não devesse explicações, fechou a porta da casa e jogou a garrafa em qualquer lugar enquanto seu corpo buscava automaticamente o sofá velho mais perto. Seu braço aninhou na cintura do menor —, vamo transar com esse menino.

A moça, chamada Maria, segurou um suspiro tenso e desconfortável. Ela olhou para o garoto, que não esboçou nenhuma reação, parecia familiarizado com aquele tipo de situação.

Embora parecesse velha para sua idade, ela não passava dos 26 anos, seu marido já estava perto dos 40, mas aquele garoto não parecia sequer ter 18.

Pero por favor, no hagas eso, Diego, no hagas...

— Cala a boca, caralho! Abre as pernas, vai...

Maria estava assustada, mais pelas condições daquele garoto estranho do que necessariamente pela própria situação, pois não era a primeira vez que o seu marido inventava umas fantasias estranhas como aquela. O sofá velho e embolorado da sala foi o canto escolhido para pôr início às brincadeiras pervertidas do homem mais velho. Sem que ninguém mais ali se opusesse, a mulher seguiu as instruções de Diego: deitou-se de frente para os rapazes e permitiu que o seu corpo vulnerável aquecesse o corpo frio do garoto numa troca de estímulos induzido e automático. O menino desconhecido evitou fazer mais que aquilo; evitou os seus seios, suas coxas, o resto da sua pele, e contentou-se em penetrá-la até que as expressões dela satisfizesse o seu marido. Já o homem mais velho, agarrado aos quadris do menor, encaixou o seu corpo no dele e deixou o seu prazer fluir em estocadas e gemidos que ecoavam por aquele cubículo estreito. Maria se compadecia, era um menino tão novo, sentia arrepios ruins ao cogitar adivinhar quantos anos de idade ele teria. Sentia que ele não era sequer desenvolvido o bastante, pois o seu corpo ainda não tinha comprimento suficiente para alcançar o ponto de prazer dela, mas percebeu, ainda dentro de si, quando aquele menino ascendeu em libido ao ser penetrado pelo seu marido. Ali, naquele momento, ela percebeu que não era dela que vinha o prazer dele.

O garoto soltou um gemido involuntário, e, daquele primeiro contato, ele entrou em orgasmo. Maria sentiu o líquido percorrer e escorrer por suas pernas, mas não contou nada ao seu homem, fingiu um orgasmo e esperou que o adulto chegasse no clímax para que aquela perversidade terminasse o mais rápido possível. Quando ficou satisfeito, Diego voltou a se vestir, tirou um maço de dinheiro do bolso e deu algumas notas velhas para o menino, que saiu sem dizer uma palavra. Somente ali Maria percebeu se tratar de um garoto de programa.

Mas isso já não importava mais. Ela foi se lavar e dormir, aos prantos, preparando-se para o dia seguinte onde voltaria a cozinhar, lavar e cuidar da casa enquanto o seu marido abusivo enchia a cara nos bares. Com o passar dos tempos, aquela vida virou rotina... mas então, outra pessoa chegou para somar à casa.

Miguel nasceu.

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9 anos depois – 20:56 hrs

Miguel chorava muito. Diego havia ido longe demais.

Ele sabia que aquela criança não era sua. Miguel era um lindo menino de pele corada; um amarelinho castigado pelo sol, de cabelos curtos, pretos e lisos como o manto mais macio. Tinha os olhinhos puxados, aqueles mesmos olhinhos do passado maluco do adulto, olhos esses que eram difíceis de encontrar nas ruas de El Paso, um lugar prioritariamente composto por latinos. Diego sabia... sabia que era culpa sua, mas jamais admitiria. Maria engravidou, e não era dele. Aquela criança estava condenada a desejar nunca ter nascido naquela família.

— Menino nojento, nojento!

Miguel apanhou tanto naquele dia que acabou sujando sua roupa. Os dejetos escorriam por sua perna e encontravam o seu fim no chão. Diego, não satisfeito por encontrar o garoto em situação tão deplorável, o puxou pela franjinha e esfregou o seu narizinho no mesmo piso sujo. Miguel apertou os olhinhos, que já eram tão pequenos que se tornaram apenas dois risquinhos no seu rosto, e fechou a boca o máximo que conseguiu para não comer as próprias fezes como aconteceu da última vez.

— M-MÃE!!

— Porra de moleque idiota...

Diego o soltou, não sem antes estapear o seu rosto com força, adormecendo o lado esquerdo da face do garoto. Atordoado, Miguel correu até a cozinha onde sua mãe estava, tão vazia dos olhos que já não tinha forças para defendê-lo. O tomou pela mão, o levou até o quintal improvisado da casa e o limpou com um copo e água fria, tudo o que tinham no momento. Miguel chorava copiosamente, de frio, de dor, de amargura.

Uma hora depois, estava limpo e alimentado. Com apenas algumas bolachas no estômago, Miguel estava na cama quando ouviu a porta da frente se abrir. Ele vestiu um casaco e caminhou para a sala, onde encontrou sua mãe sentada no sofá, chorando baixo.

— Mamãe...?

Ao contemplá-lo, ela não reagiu. Miguel seguiu até o seu lado e olhou bem à sua volta: não ouviu barulho algum, provavelmente estavam sozinhos em casa. Com a ausência daquele demônio, ele finalmente tomou coragem para perguntar certas coisas, Miguel tinha 9 anos e, embora ainda tivesse algumas atitudes infantis, o brilho da inocência já havia se apagado de seus olhos meigos.

— Mãe, quem é o meu pai...?

Aquela foi a única pergunta que a fez desviar o olhar do chão para os olhos dele. Era a primeira vez, em anos, que faziam algum contato visual demorado. Miguel insistiu.

— O meu pai... eu sei que não é ele. Quem é o meu pai?

— Eu não sei...

— Você sabe sim! Me conta! — com os olhos marejados, Miguel insistiu, ele não tinha nada a perder. — P-por favor...

Com tanto daquele silêncio, a testa cansada e os olhos vazios daquela mulher pareciam cooperar para as frustrações do garoto, todavia, contra todas as probabilidades, ela lhe revelou.

— Ele vive na rua... Eu não sei o nome dele. Eu não sei quem ele é. Ele é garoto de rua.

Miguel não era bobo, ele sabia o que significava tudo aquilo; e era tudo o que ele precisava ouvir.

Sem pensar em nenhuma consequência, ele se levantou e seguiu para fora de casa. Sua mãe percebeu tarde demais que a porta havia sido destrancada e deixada ao relento por Diego quando saiu, o que deixou o menino livre para fugir daquele inferno.

— Miguel!! NÃO!!

Ela correu, ela gritou, ela seguiu o menino até perdê-lo de vista, porém Miguel era ágil e tinha pernas magras e flexíveis. Ele não confiava em Diego, ele não amava Maria, ele tinha um casal de responsáveis por quem não sentia vontade de continuar lutando. Ele se apegou à única figura humana que ele sabia que existia em sua vida e que ainda não havia magoado o seu coração.

Todas as Coisas VoltamOnde histórias criam vida. Descubra agora