Quem sabe eu ainda sou uma garotinha...

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10 de dezembro de 1962. Minha mãe dizia que o dia em que eu vim ao mundo estava com um sol de matar. Típico das tardes cariocas beirando o verão ( a primavera, o outono e o inverno também ). Tinha que ficar carregando uma toalha improvisada de
lá para cá para limpar o suor. Grávida quase parindo devia ser pior ainda, até porque eu era a primeira filha do casal recém casado.

Dona Nancy, que na época era muito novinha para ser chamada de dona, mas que com o tempo o apelido parecia cair bem para a senhora de cabelos brancos, era minha mãe. 18 anos e com a primeira filha dela e de Seu Altair no bucho.

Depois de um dia inteiro com uma criança agarrada na priquita, eu nasci às 18:30, graças aquele aparelho que parece uma pinça de tirar criança. Eu consigo imaginar a cara de alívio da minha mãe, deitada numa cama preparada especialmente para aquele
momento, dando graças à Santa Rita de Cássia pela sua cria ter finalmente nascido.

- É uma menina! Olha que grandona!

Mamãe sempre contava essa parte da história com todo o ar do seu pulmão de tanto orgulho. As enfermeiras diziam que eu era a maior bebê menina que já tinha nascido naquele hospital. 4 kg e 50 cm também não era para menos.

Carla Regina Eller. O mais perfeito nome para colocar na filha. Minha mãe sempre foi muito fã dessas novelas que passam em canal aberto, daquelas bem dramáticas mesmo, e gostava desses nomes mais empiriquitados.

Logo quando viu o meu pai, já mandou a real:

- Altair, vai logo registrar a menina porque daqui a pouco roubam o nome da nossa filha!

E lá foi papai, com o seu melhor figurino, parecendo o Roberto Carlos, como dizia dona Nancy, que, ao contrário de muitos homens da época que preferiam ter filhos homens para aguentar o trampo, ele ficou muito feliz quando nasceu a primeira filha
mulher dele.

Na porta do cartório, bateu aquele pensamento. Papai sempre foi um homem que gostava da paz e sabia que com o nome “Carla Regina”, talvez não existisse muito acordo de todas as partes.

Minha querida vózinha, sogra do meu pai, era muito religiosa tipo aquelas
senhorinhas que andam pra lá e pra cá com o terço na mão toda corcundinha e têm muitas imagens de santos pela casa toda. Ela era muito devota de Santa Rita de Cássia. Então o meu pai, que não era bobo nem nada, fez quase que uma química perfeita com os nomes: Carla, que era ideia da esposa, e Cássia, que era o nome da santa que a sogra era devota, começavam com C, então por quê não colocar “Cássia Regina”, já que era uma mistura das vontades das duas?

Como o cara tinha tido essa brilhante ideia, ele nunca soube. Nem deu tempo de ser chamado para a salinha para registrar que já foi correndo voltar para o hospital para contar para a sua esposa sobre sua ideia, que para decepção dele, ela não gostou. Defendeu até o fim o nome de novela para a pequena grande criança. Mas como o meu pai também não desistia fácil, tentou convencê-lá sobre o nome que tinha formado. Até que ela cedeu.

- Vai ser Carla Regina ou Cássia qualquer coisa. Cássia Regina só debaixo do meu cadáver! - desbravou a mulher que mesmo tendo acabado de parir uma criança, continuava sendo do jeito teimoso de sempre.

Então, ele concordou e voltou ao cartório pensativo. Que dúvida cruel! Era o nome da filha dele que estava em jogo. Como queria muito colocar o nome Cássia na sua primeira filha que, vamos ser sinceros, era para ganhar uns pontinhos a mais com a sogra, resolveu optar por colocar “Cássia tananan”. Mas agora faltava decidir o segundo nome, já que era uma exigência de sua esposa.

Quando foi registrar, contou a história para o cara que tava fazendo o papel do registro, ele deu uma sugestão:

- Por quê você não coloca “Cássia Rejane”? É um nome que parece com Regina, mas não é Regina, é Rejane.

E não que o véio achou uma boa ideia? Voltou para casa feliz da vida com o nome estampado na certidão de nascimento: Cássia Rejane Eller.

Nasci e vivi durante meus seis primeiros anos no Rio de Janeiro. Durante esses anos, meus pais tiveram mais três filhos: Carla Regina e Cláudia Mara, que são gêmeas, e Cristina Rúbia, que todos nós chamávamos de Rubinha, por ela ser a caçula. Quando a minha mãe descobriu que tinha mais meninas além de mim, resolveu colocar o tão sonhado nome na segunda filha que aparecesse, que foi uma das gêmeas.

Não me recordo muito sobre esse tempo mas sempre tive algumas memórias
resgatadas graças à minha família. Uma delas, por exemplo, foi quando eu tinha três anos e meio e minhas irmãs gêmeas, que tinham um ano e meio na época. Minha mãe contou que era bem de manhãzinha, quando o galo nem tinha cantado ainda, quando ela ouviu a minha voz falando com alguém ao quarto ao lado:

- Fala baixo, senão a mamãe escuta. - eu sussurrava.

Achando bem estranho esse diálogo para uma criança de três anos e meio, ela foi averiguar. Quando ela chegou ao cômodo, deu de cara comigo, com dois alfinetes roubados da máquina de costura, bancando a enfermeira querendo dar injeção nas minhas irmãs, que tentavam fugir de mim.

- É só uma picadinha! Não vai doer.

O final dessa história eu nunca soube, já que quando chegava nessa parte, nós todos caímos na risada e nunca era terminada.


Durante toda minha infância e adolescência, minha mãe era a responsável pela casa. Claro que ela tinha ajuda da nossa babá, mas como papai trabalhava nos trampos do
exército, essas coisas de militar, ele ficava fora de casa durante toda semana e o firme com as crianças ficava tudo por conta da esposa.

Sempre achei a minha mãe um tanto quanto elegante. Ela me lembrava a Fernanda Montenegro em sua juventude. Talvez o gosto por novelas tenha influenciado bastante em como ela era. Cuidava da casa ao som de vários artistas brasileiros da época como Dolores Duran, Carmem Miranda, Milton Nascimento, esses caras da pesada. Minha primeira influência musical foi sem dúvidas ela e a minha babá, que colocava no rádinho marchinhas antigonas de carnaval e dizendo ela, que eu tentava reproduzi-las com meu pouco vocabulário, mas acho que um “gugu-dadá” de uma menina comum
da zona sul do Rio de Janeiro não chegaria aos pés de Cartola.

Seu Altair, meu pai, que já era quase 10 anos mais velho que a esposa, trabalhava no exército como paraquedista. Papai sempre tentou me explicar através de suas 1001 histórias sobre quando trabalhava ativamente nisso e ficava fora a semana toda, mas
acho que realmente não era minha praia porque eu não entendia o que caralhos significava cada coisa do meio militar.

Apesar da maioria dos militares serem mais cara fechada e caretas, meu pai sempre foi um homem muito brincalhão, daqueles que andam pela casa só de cueca e brincam de lutinha com os filhos, apesar das filhas não curtirem muito, tirando eu.

Quando eu não tinha aula, papai me levava para o quartel e me apresentava um pouco de lá, além de aproveitar para me ensinar um pouco de karatê, coisa que ele era mestre com suas várias cores de faixas. Apesar de ele sempre me deixar ganhar, ele conta que eu me divertia muito, o que impressionava minha mãe já que não era uma “coisa de menina”, que o meu pai rebatia e dizia para me deixar livre para eu fazer o
que eu bem entendesse.

Eu sempre fui mais na onda do meu pai. Ele me criou como um moleque do
subúrbio. Sempre achei essas “coisas de menina” muito frescurentas, muito viadinhas. Eu curtia muito mais jogar uma pelada com os meninos da minha rua e descer a rua mais íngreme do meu bairro de carrinho de rolimã.

Minha mãe dizia que desde de quando eu era bem pequenininha, eu tirava os laços e os babados dos vestidos. É uma coisa que sempre foi minha.


O trabalho do meu pai exigia que ele sempre estivesse disposto a fazer de tudo para cumprir o seu trabalho de proteger a nação onde quer que ele estivesse e foi assim durante a minha infância e adolescência toda. Mal tinha completado os meus seis anos, quando tivemos que nos mudar para Belo Horizonte, em Minas Gerais.










Um anjo caído: a história de Cássia Eller - volume 1Onde histórias criam vida. Descubra agora