Movimentação

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Outubro de 2014

Cúmbria, Inglaterra

Depois de quatorze anos, aquela lembrança ainda me tirava do sério. Não conseguia pensar por mais de cinco segundos em tudo aquilo, em como eu havia perdido minha família inteira em apenas quinze segundos e ainda havia sobrevivido sem que ninguém soubesse me explicar como.

Eu estava no meu escritório. Já havia terminado de assinar todos os papéis e organizar meus arquivos em ordem alfabética. Esta era a parte ruim de ser delegada-geral de cidades pequenas: nada acontece. Seria loucura minha pensar que eu queria um crime acontecendo pelo menos a cada dois dias? Ok, uma vez por semana, então.

O problema era que não acontecia absolutamente nada naquela cidadezinha de fim do mundo que eu estava morando há seis anos desde que saíra do orfanato. Trabalhar assim era tanto completamente viável quanto impossivelmente tedioso. A única coisa que me animava - um pouco - naquele lugarzinho era meu noivo lindo e cobiçado, Nop, que apesar de não ser lá aquelas coisas na cama, ainda era um dos mais desejados do estado. Ele era advogado em Michigan, por isso estava quase sempre fora da cidade. Porém, sempre tinha tempo de vir para a cidade e me ver.

Apesar de gostar muito de Nop, ainda tremiam-me as pernas sempre que pairava o olhar sobre o anel na minha mão direita. Não pelo nervosismo em si, mas sim porque não tinha certeza de que era isso que eu realmente desejava para minha vida.

Mas eu precisava tomar essa decisão, afinal, eu já tinha vinte e quatro anos e não podia ficar esperando o "príncipe encantado". Nop fora aquele homem que mais chamou a minha atenção assim que completei meus estudos e me tornei delegada do condado de Cúmbria. Ele estava de folga e estava passando o dia na cidade com alguns amigos da empresa em que trabalhava. Conhecemos-nos através de um amigo em comum. Foi concordância à primeira vista. Gostávamos das mesmas coisas, de certa forma, e nos sentimos um tanto atraídos um pelo outro. Ele era lindo, claro. De morrer. Tinha ombros largos e porte de homem marrento porém domável. Às vezes usava um óculos lindo de grau e na maioria do tempo usava terno e gravata, e, tenho de admitir que tenho uma quedinha por nerds. E, falando sério, que mulher resistiria a um homem que parecia ser tão sério e tão bonito ao mesmo tempo?

Pois é.

Dois anos de namoro e ele já havia me pedido em casamento. Quer dizer, tem pessoas que esperam sete ito anos para se pedir em casamento, r... como Nop era sempre tão sério o pedido não me assustou nem um pouco, assim como não havia me deixado nada excitada. Só havia o ouvido pedir, em um restaurante na Inglaterra, e entre uma garfada e outra eu falei "sim". Fim de conversa. Ele pôs o anel em minha mão e eu forjei um sorriso.

Eu não o amava, e sabia disso. Estava casando-me apenas para sentir-me segura. Ele me deixava segura, de certa forma.

Para quem me conhece, ouvir isso devia ser o cúmulo, pois sempre fui independente de qualquer pessoa. Nunca precisei de ajuda em nada, consegui tudo o que eu tenho hoje sozinha. E estou feliz com isso. Ser delegada de um condado pequeno não era a minha primeira opção de futuro, mas estou feliz com o que acabei conseguindo.

Sentada à minha mesa, eu olhava - pela trigésima vez - para o meu anel. Minhas pernas tremiam pausadamente enquanto eu analisava cada detalhe daquela joia. De repente, o som da porta cortou  completamente os meus pensamentos diários sobre o que eu estaria fazendo da minha vida.

Apertei meus dentes, imaginando ser Seng novamente. Seng era um mendigo local, que nem sempre tinha o que comer e acabava roubando a mercearia da esquina. Mas roubara no máximo um pão ou uma bolacha de sal. Não era um mau homem, só necessitava das coisas. Enfurecia-me quando ele passava pela minha porta, porque eu não aguentava vê-lo naquele estado, algemado apenas por tentar alimentar-se. Por isso sempre o soltava, sem que ninguém da cidade soubesse, claro. Não podiam me subestimar de jeito nenhum. Apesar de Cúmbria ser um condado pacato, eu tinha que manter a ordem e a minha imagem era o mais importante do meu trabalho, afinal.

Entre o Certo e o Errado (Versão MonSam)Onde histórias criam vida. Descubra agora