Flocos de Sorvete (Erin Parker)

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Às vezes você se impressionava com o quanto o mundo era grande. Como a vida existia além das paredes da Ordo Realitas e como a vida das pessoas continuava a mesma coisa desde quando você deixou esse mundo para trás.

As cores ainda eram as mesmas, as pessoas continuavam com seus empregos, se preparando para saídas curtas de fins de semana, na esperança de começarem uma melhor segunda-feira. E o ciclo sempre se reiniciava. Semana após semana, mês após mês, feliz ano novo.

Você perdeu a conta de quantas vezes já tinha recomeçado. De como a vida era artes do paranormal invadir sua rotina e pegar tudo o que ele queria, deixando os trapos para que você juntasse novamente, tentando moldar um novo futuro incerto.

A Ordem não era exclusivamente brasileira. Veríssimo já tinha deixado isso claro para vocês fazia muito tempo e não era de hoje que você queria conhecer os mais diferentes agentes que vocês tinham ao redor do mundo.

Como muito jovem, você sabia que o chamado para uma missão assim, tão longe e internacional iria demorar para chegar até você. Pelo menos é o que você pensava antes de entrar na Força D.

O cheiro da carne era presente. O aroma leve das batidinhas com gelo, o conforto de um pano esticado no chão, a sensação leve de se deitar em uma rede. Aquele foi um dos poucos dias em que a Ordem obteve uma folga e vocês aproveitaram da melhor maneira possível. Com a música alta, você fechou os olhos naquele momento, percebendo o barulho de movimentação da piscina, a brisa em seu corpo coberto de protetor solar, o pouco vento batendo em suas pernas.

E então, o celular de trabalho de seu chefe tocou. Uma equipe de Londres emitiu um chamado naquela manhã de sexta-feira, com urgência de nível quatro. A folga acabou mais rápido do que esperavam e de um calor insuportável que estavam vivendo no Brasil, vocês se encontraram no frio inverno de Londres.

A missão se tratava de um museu de artes onde escriptas tinham sido supostamente avistados e em um local tão distante, você acabou as missão se perguntando até onde eles iriam? Em qual momento, qual dia eles parariam de seguir a desconjuração e qual o motivo individual de cada pessoa ter entrado nisso?

O clima era de cansaço. A equipe estava quase voltando para o Brasil, restando apenas uma tarde para aproveitarem a cidade como pessoas normais. Claro que, como indivíduos, cada um de vocês gostaria de ver um centro turístico, atração ou paisagem. E nessa divisão, você ficou sem saber qual caminho seguir, indo pela opção mais confiável, próxima de você e de segurança.

— Eu acho que a pedida de hoje é um sorvete! – Você riu, vendo a animação da ruiva em sua frente.

A calçada molhada, emitindo o barulho de suas botas pesadas em casa passo. O seu reflexo distorcido em cada poça d’água, as arvores encharcadas, deixando por cair gotas aleatórias em pessoas que por ali passavam agasalhadas como pinguins andando na mais densa neve.

E Erin, com um casaco grande, felpudo e verde musgo. A calça larga com bolsos incontáveis e as botas de aparência mais pesadas que as suas, pedindo sorvete.

— Eu não acho que seja o clima ideal pra’ um sorvete. – Você comentou, andando com a garota e tirando foto dos arredores.

O bairro que estavam não era em si turístico. Algumas casas, prédios antigos, uma placa escrita “The Little Gift shop on the Corner”, “Whistles” com 20 por cento de desconto e lojas pouco conhecidas. Dentre elas, uma loja de sorvetes com luzes amareladas, as cadeiras para fora vazias pelo péssimo tempo que acabara de passar, os funcionários parados, esperando alguém entrar e fazer a compra do dia.

— E eu acho que depois de lutar com essa gente louca, merecemos um docinho. – Erin te olhou, como se precisasse de permissão para entrar na loja, ou talvez ela apenas quisesse sua companhia.

Revirando os olhos, você entrou na frente. O local era chamativo. Milhares de complementos, sabores, cores, caldas, tudo o que um sorvete precisa para chegar ao seu auge da beleza com os melhores sabores.

A ruiva pegou algum sabor verde, parecendo um choco menta clássico enquanto você foi direto em seu sabor favorito. Pagando, foi a vez de sair naqueles finos pingos de chuva que restavam com um sorvete na mão e a ausência de guarda-chuvas.

— Você já viu neve antes? – Ela lhe perguntou, tirando você de seus pensamentos mais diversos.

— Neve? Eu nunca nem saí do Brasil. – Você riu, lambendo seu sorvete. — A ideia de vir até aqui, mesmo que em missão, pra’ mim já foi de outro mundo. E você?

— Nah, não tive muitos momentos de viagem nem dentro do Brasil, imagina entrar em um avião. Mas desde pequena eu queria ver, pena que viemos em dias de chuva. – A mesma dizia bem humorada, mas você conseguiu sentir a nostalgia em seus olhos que refletiam ao chão. Pensamentos mais profundos e pessoais do que aquelas poças largas que desviavam.

— Você imaginava ter um tempo de folga assim da Ordem um dia? – Questionou, fazendo com que ela virasse os olhos para você de novo.

— Eu não achava que ia acontecer tão cedo, mas é legal. Eu nunca achei que estaria vivendo isso um dia.

— Lutar contra monstros e doidos descalços?

A garota gargalhou, parando em um dos bancos de rua com você, jogando a água que ali estava na calçada. — E conhecer pessoas incríveis como vocês. Nunca fui uma pessoa muito cheia de amigos
Percebendo o desviar da amiga, você olhou em seus olhos com dificuldade, com um sorriso confortável e empático. — Eu prometo que nunca vou te deixar. Se isso valer de algo, você sempre vai me ter aqui, independentemente do tempo.

A ruiva subiu o olhar, encontrando seus olhos. — Você não vai aguentar. – Ela riu sem humor, jogando o papel do sorvete no lixo mais próximo. — Trabalho é diferente, a gente nunca conhece as pessoas cem por cento. Isso sim é mais trabalhoso ainda e não tem salário.

O sentimento era reciproco. Você entendia exatamente o que ela estava tentando dizer. Sabia como era se sentir uma pessoa isolada, fora de destaque e sem utilidade. Você se via em Erin muitas das vezes e esse foi um dos motivos pelos quais a escolheu. Como amiga, companheira. E um dos motivos dos quais seu coração a escolheu, como algo a mais.

Você sorriu, causando a confusão na garota que sentiu sua mão tocar a maçã de seu rosto. — Eu aceito esse trabalho, não se preocupe.

Às vezes nos lembramos do porque somos seres humanos. Sentimos os impulsos mais fúteis e incontroláveis possíveis. Amamos em meio à guerra e caos. Erin era caos. Era tudo o que não se busca em um dia calmo de outono. E você, era o outono que faltava, ou o verão que terminaria na mais inesperada reação química possível.

Seus lábios foram aos dela, fechando seus olhos no momento que pra’ vocês, valeu a viagem toda. Os escriptas, as noites horríveis de sono, os ferimentos.

O frio percorreu sua espinha. Frio interno de borboletas adolescentes e sentimentais. Mas também, o frio físico. Do vento que soprava, do banco ainda um pouco úmido pela péssima secagem de vocês, das botas geladas já molhadas pelas poças mais cheias. E os flocos de neve, que caíam em seus casacos naquela fria tarde de inverno.

Ordem Paranormal - One ShotsOnde histórias criam vida. Descubra agora