Capítulo um.

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                                   V2🥈

• Rio de Janeiro, Complexo do Alemão.

Observo o porta-retrato exibindo nossa foto em Copacabana, registro do último Réveillon juntos. A ferida no meu peito parece incurável, o tempo só me deixou mais fodido da cabeça sem a calmaria dela para cessar minhas guerras. Às vezes, sussurro palavras que não pude dizer a Ana em noites solitárias no nosso quarto.

Suas roupas permanecem onde as deixou, seus perfumes persistem, assim como sua pasta de trabalho. Desfazer-me dessas lembranças pareceria um adeus definitivo, e eu não estou pronto para isso. É apenas um "até logo", minha princesa.

A pior parte do luto não é a descoberta, nem o enterro, ou a missa do sétimo dia, ou a celebração do primeiro aniversário de casados sem a pessoa. A pior parte do luto ocorre em um dia comum, quando você está seguindo a vida de boa, e algo trivial acontece, fazendo você querer contar àquele alguém. Aí a dor insana da triste realidade te esmaga.

Sinto isso toda vez que vou ao terraço, quando me deito para dormir e espero por ela saindo do banheiro para compartilhar qualquer mínimo detalhe do seu trabalho. Mas ela nunca mais voltou, a Ana nunca mais saiu daquele banheiro vestida em uma camisola branca infantil que eu fazia questão de zoar todas as noites.

Acordar e não sentir seu cheiro, não poder vê-la se maquiando de frente para o espelho que mandei fazer especialmente para ela, pois, segundo a mesma, queria poder visualizar-se por inteira. É aí que meu mundo desaba novamente. É sempre nos "e se"; E se ela estivesse viva, e se eu pudesse ter com quem compartilhar o restante da minha velhice. E se...

A morte nunca me assustou, não até depois de tê-la perdido. Desde então, não soube lidar com os finais. Nenhum deles. Principalmente quando ouço um "Nunca mais". E a morte não avisa, ela só chega de mansinho, silenciando tudo. Não restando mais nada. Acabam-se os planos e sonhos. Só sobra angústia!

Ela segurou minha mão. Ana Luísa curou minha alma e meu coração da maneira mais doce que um ser humano poderia ser curado. Ela fez de mim o homem que sou hoje. E se estou vivo, se meu coração ainda bate, é somente pela certeza de que, um dia, mesmo que distante, irei sentir o sabor do seu corpo novamente. E aí, eu te darei todos os beijos e abraços que ainda queria ter dado.

Teremos todo o tempo do mundo, uma eternidade!...

NG: Estou falando sério, Melissa. Troca essa porra, olha que bagulho indecente. - Me disperso com a movimentação agitada da sala e coloco a foto no lugar, limpando as lágrimas que caem pelo meu rosto. Olho meu reflexo no espelho e ajeito a postura, recuperando a voz falha para ir até eles, que, para variar, já estavam brigando.

Sai ano, entra ano, e o Yan muda em tudo, menos em ficar na cola da Melissa. Parece chiclete grudado no cabelo. Maluco com esposa e filha em casa, mas ainda sim pesa a mente da irmã.

Mel: Mano, para de encher o meu saco. Vai procurar o que fazer. Não sou sua mulher. - Caminha jogando os cabelos para trás. Agora, eles não eram mais castanhos, e sim pretos. Uma cor intensa que realçava ainda mais sua beleza. Minha menina!

NG: Cinco dedão na tua cara, ó. - Estende as mãos, exibindo os dedos. - Parece nem que é casada e tem filho de bigode.

Mel: Tô casada, mas não tô morta. - Parou de andar para avaliar Yan de cima a baixo e, em seguida, virou-se novamente.

V2: Ô caralho viu, vieram aqui pra brigar na minha frente? Se for, mete o pé. - Gesticulo, aparecendo em seus campos de visão. Passo as mãos pelo meu cabelo grisalho, e Mel levanta sua sobrancelha esquerda.

No Alemão 3 (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora