Amigos

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Não deveria ser daquela maneira, e ele sabia disso. Soube desde o primeiro momento e se muito aquilo o fazia pior. Pois se ao menos ele tivesse evitado no começo, arrancado pela raiz, talvez, apenas talvez, não estaria vivendo aquilo que vivia agora.

Era noite, perto das nove, e em sua mente ainda tão ignorante ele a pouco havia se considerado sortudo quando seu patrão resolveu dar a ele um final de semana inteiro de folga. Antonio tinha planos, coisas que burros como ele nao entenderiam, e cá entre nós, Ramiro não tinha tanto interesse em saber qual seria o próximo bote do grande produtor rural.
Essa era apenas mais uma das tantas mudanças pelas quais ele vem passando, e talvez não estaria sequer reparando nela se não estivesse totalmente mergulhado numa espiral de coisas que não entendia ainda.

Se fosse em outros tempos, Ramiro iria estranhar, ficar preocupado e até mesmo ficar preparado para auxiliar seu patrão em seja lá o que, independente de sua folga, mas agora, a última coisa que ele pensava ou sequer se importava era em Antonio La Selva ou o que ele estava aprontando.

Ramiro tinha mais coisas em sua mente. Não. Na verdade, ele tinha apenas uma e uma única coisa em sua mente. Era alguém. Uma pessoa feita da mesma carne que ele, que tinha os mesmos orgãos, também sangrava se ferido, chorava se triste e sorria quando feliz, era assim que era e não precisava ser nada alem disso, mas se ele e Kelvin eram feitos da mesma coisa, porque ainda assim pareciam tão diferentes?

No começo, bem no comecinho, parecia ser óbvio, Kelvin é frufru. Ramiro é macho. Parecia uma resposta simples o suficiente pra ele por semanas, talvez até meses. Kelvin trabalha em um bordel, Ramiro é homem de confiança do maior produtor rural da cidade. Kelvin é esperto, alegre, incrível. Tudo o que Kelvin toca ganha vida aos olhos de Ramiro. E isso o fazia cada vez mais olhar para suas próprias mãos, e como tudo que ele tocava morria, literalmente, com mais frequencia que não. Então no geral, ali sentado na mesa do canto do bar, observando Nando no karaoke, as meninas cativando seus clientes e o loiro que decidiu na marra que moraria em sua mente, Ramiro se dava conta que ele e o mesmo eram iguais apenas na carne.

Porque quando Kelvin sorria, parecia que o céu nublado e chuvoso da mente dele se abria e o sol brilhava na mesma medida que os olhos castanhos do mais baixo, e quando este o tocava, aquele pedaço de pele esquecia de todas as vezes que se abriu em ferida. Suas cicatrizes eram curadas e sua dor sanava. Era esse o maior medo de Ramiro, afinal. Pior do que sentir algo novo, mais assustador seria não sentir as dores espinhosas e frias que o fizeram ser ele.

"Ih essa é sua cara de pensativo, o que tá pegando Rams?" Kelvin estava ali ha uns minutos, talvez cinco, talvez dez, não sabia e nem se importava. Quando Ramiro fazia aquela cara, Kelvin murchava em preocupação, com medo, aquela coisa estranha dentro do peito e tudo o que ele queria era abrigar o amado amigo em seu abraço, como se em alguma realidade distorcida desse sentimento ele fosse ser capaz de proteger Ramiro.

E mesmo com a música e vozes ao fundo, naquela mesinha do canto onde eles eram quase invisíveis, Ramiro e seu copo de rum e sua confusão, Kelvin e seus olhos regados de preocupação enquanto suas mãos brincavam com uma latinha de refrigerante pela metade, o mundo ao redor, tudo que existia em volta deles aos poucos se dissipava.

"Eu to pensando só. Só pensando. To bem. Só pensando só" Naquele ponto Ramiro já não sabia se repetia para ele mesmo ou se estava apenas respondendo a Kevin. A verdade é que há semanas agora tudo o que Ramiro fazia era pensar.
Sempre pensar e nunca agir, porque ele não pode, não deve agir, não quando se sente daquele jeito. Pois se ele não fosse um jumento, um burro, um grosso... Ele diria a verdade, de maneira lenta, suave, como ele vê Kelvin olhando pra ele agora.

"Não caio nesse teu papo furado faz tempo Ramiro. Me diz logo o que é" Kelvin pressionou, olhos semi-cerrados pegando os de Ramiro como imãs. Agora eram apenas olhares, fixos, intensos, iguais.

Sweet HomeOnde histórias criam vida. Descubra agora