I 1.2 - Diáspora

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O garoto ia na frente, atravessando o campo de lírios de Amadam. Adiante, ele conseguia ver as construções do pequeno vilarejo: eram casas simples, feitas de pedras grandes e rústicas, com janelas fechadas com vitrais coloridos. Naquelas que estavam abertas àquela hora, ele conseguia ver alguns penduricalhos que tintilavam com o vento: eram feitos à mão, com palha trançada e sinos delicados. Alguns representavam Amadam, outras traziam a estrela de Alim.

Os telhados das casas eram achatados, esbranquiçados por uma fina camada de neve. Os lírios de Amadam cresciam sobre eles e também no meio das ruelas de pedra como erva daninha. O lírio é uma das poucas plantas que floresce em um terreno tão inóspito e, por isso, acredita-se que é a própria Amadam que o rega com suas lágrimas.

O dia estava apenas começando, os raios de Amandeep ainda se espreguiçavam, alongados e finos, contornando o chafariz da praça que era o ponto central do vilarejo. Uma estátua de Vashï Amadam saía do meio da fonte. A deusa levava uma das mãos à têmpora, fechando os olhos como se sonhasse. Na outra mão, ela carregava um buquê de lírios. Os cabelos eram tão longos que formavam a própria fonte, fazendo com que ela parecesse envolta em um redemoinho de fios. O som da água gotejando era o único que se ouvia.

Ele perguntou ao menino o que ele fazia no meio do campo tão cedo.

– Aqui não é tão cedo assim. Não temos sono – foi a resposta.

Porém, ninguém mais estava à vista.

– Onde estão todos?

– Imagino que cansados demais para se levantar... Apesar de não dormirmos tanto, sabemos apreciar uma festa.

– Qual festa?

O menino o mirou como se ele fosse de outro mundo: – O senhor é muito esquisito.

Não diga, pensou ele, nem um pouco surpreso.

– Ontem foi o Dia de Amadum, houve uma festa para comemorar a irmã de Amadam. – O garoto apontou para o chafariz. – O senhor não está familiarizado com os deuses?

Deuses...

Sim, ele sabia que, ali naquelas terras, a maioria dos povos acreditava em deuses. Eram doze deles, um para cada mês do ano, um para dois dias de cada mês. Deuses para a morte, para o sacrifício, para a paz...

Sobre os deuses ele pouco sabia, mas tinha algumas lembranças de sussurros que imploravam por eles. No início, eram insistentes e, aos poucos, foram se tornando lamentos cansados.

"Os deuses nos abandonaram", ele conseguia ouvir no fundo da mente.

– Estão todos em suas camas ainda... O senhor disse que nasceu aqui?

– Sim – garantiu ele, apesar de não ter certeza.

O caminho havia sido árduo até encontrar aquela vila. Antes de tudo, ele se lembrava apenas de uma masmorra escura, de algumas frases sem sentido e, então, de repente, luz. Luz demais, cegando-o. Acordara nu e completamente sozinho no meio de um descampado coberto pela neve. Não sabia quem era, nem como havia chegado ali.

Sou um homem, ele descobriu, mirando o próprio corpo.

Não sabia nem mesmo se aquilo era um nascimento, ou algo pelo qual outros homens já haviam passado. Um ritual, talvez? Mas ele imaginava que não e se surpreendeu por, ao menos, saber o que seria considerado um ritual.

As palavras e seus significados vinham até ele como se sopradas por uma pessoa que estava muito distante dali.

Homem. Nu. Ritual.

O Portal IV - Fios de Alim - Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora