II 2.9 Ele virá

93 31 24
                                    

Mais uma vez, ele ordenou que ela dançasse. Estaria no salão, aguardando-a. E ela deveria proporcionar aos filhos um espetáculo digno da favorita do líder.

Só que, nesta noite, ela não quis obedecê-lo.

Estava cansada, sentia os ossos pesados, os músculos fracos. Vagou solitária pelas ruínas do palácio inundado, acompanhada somente da criança que insistia em segui-la.

– Vashirï – cumprimentou uma filha de Amadum, de longos cabelos ruivos e olhos sonhadores. Ela carregava duas crianças, uma no colo e a outra no ventre. – Vou levar minha filha ao jardim, posso levar a sua... pequena companheira?

– Gostaria de ir? – ela perguntou para a menina.

A criança a observou desconfiada. A mãe colocou a filha no chão e ela abriu um sorriso para a pequena rani de roupas esfarrapadas. A filha de Amadum tinha um sorriso bondoso e as duas concordaram. A criança foi na companhia delas.

Ela se viu sozinha pela primeira vez em algumas semanas.

Sempre que a criança se afastava, ela se sentia mais leve, menos sufocada. Sabia que a criança era o elo com memórias perdidas, confusas e uma vida de dor. A sua presença era como uma faca cega fazendo pressão contra a carne. Não a perfurava, nem fazia com que sangrasse, mas era um constante lembrete de que, se quisesse, poderia fazê-lo.

Na maior parte do tempo, tudo o que ela queria era que a criança compartilhasse com ela o que sabia.

Porém, quando ela se afastava... Que alívio! Que liberdade!
Se quisesse, poderia acreditar que era uma pessoa inteira, nova, sem passado algum. Era livre como aqueles filhos que dançavam naquela noite de festa.

Nesses momentos, ela se permitia pequenos prazeres aos quais não se entregava na frente da criança.

Foi atrás do único que poderia servi-la.

Ele sempre ficava numa galeria quase deserta. Os aposentos eram sucedidos por um amplo salão de espelhos, rachados pelo tempo. Até mesmo o chão era coberto por espelhos. Assim como ela, ele apreciava música e uma boa bebida. Sempre tinha o que ela precisava. Naquele salão, escondida dos olhares dos outros filhos, ela gostava de dançar. Ouviu a música que vinha dos aposentos pessoais dele e seguiu a toada antiga.

Assim como ela, ele era capaz de fazer fogo com as mãos, música com a mente. Não precisava daqueles tolos que tocavam amedrontados atrás do líder.

Era só desejar... E pronto.

Ali estava a música, a vida.

Os sons não eram produzidos por instrumentos, eram sussurrados pelos deuses, vinham no ar, dançando no vento e balançando os cabelos negros.

Ela passou pelo interior do quarto, percebendo a cama desarrumada iluminada apenas pela lua de sombras. Aos pés da cama, dormindo relaxadamente, havia uma imensa pantera como a noite. Ela afagou suas orelhas sem temê-la e saiu para procurar seu dono.

Nunca conseguia lembrar o nome dele, mas, se estivessem assim, um diante do outro, os deuses sussurravam nos seus ouvidos como faziam com o líder.

– Ariel – ela chamou, encontrando-o jogado em uma rede entre pilastras cobertas por musgo. Ele tinha os olhos sonhadores, mirando o sorriso de Bhaskar, um braço atrás da cabeça, os pés descalços como todos os filhos. Usava um colete de couro antigo, com um G costurado, sobre o qual apoiava uma garrafa de vinho.

– Hannah – ele a cumprimentou. Era o único que a chamava pelo nome e, por isso, ela só sabia quem era quando estava em sua presença, o que era raro. O líder não gostava que estivessem juntos e, mais de uma vez, a sua insistência em procurá-lo custou caro para Ariel e até mesmo para ela. – Vejo que Liliana a encontrou.

O Portal IV - Fios de Alim - Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora