Palacianos, 1122 - Prólogo

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Mata ao sul de Palacianos, 1122

Numa tribo como aquela, eram poucos os momentos de paz. O sono era um deles. Ou costumava ser.

Luc se remexeu sobre o colchão improvisado na tenda, virando-se na tentativa de espantar a intromissão que viria. Ele já conseguia sentí-la se aproximando, já começava a ouvir os sussurros dentro da sua mente, como nas noites anteriores.

Essa seria a quarta noite sem paz.

Ele dispensava a visita.

Não queria ouvir nada sobre menina alguma, sobre futuro ou traições.

Ele era um filho de Babakur e seria um dos mais fortes. Ao contrário do que diziam sobre ele, das risadas de deboche dos guerreiros e do escárnio do pai, Luc sentia no próprio sangue. Era forte, ficaria ainda mais forte.

Mas não o mais forte.

Então, não estava ameaçado.

Ela estava errada.

– Saia da minha cabeça! – ele se ouviu gritar em sonho. Tentou lutar contra, forçar seu corpo a despertar e levar aquela ilusão para bem longe. Afinal, só poderia ser uma ilusão. Todos em Adij Rariff sabiam que ela estava morta.

Assim como a maioria dos Maël.

Exceto pela menina.

– Se quer que eu saia, por que não me expulsa? – perguntou a voz. Era doce e baixa, com uma rouquidão característica, como a de alguém que tivesse gritado sem parar até quase perder a voz.

Porque não consigo, pensou ele.

– Não tem controle da sua própria mente, Luc? Pois deveria... – Agora, ela começava a aparecer na frente dele: longos cabelos castanhos, olhos grandes e expressivos, corpo pequeno e delicado. Usava um vestido amplo e branco, simples demais para acompanhar a coroa de ouro maciço sobre a sua cabeça.

– Sempre disseram que Amadum não deixava que subissem em suas asas portando itens de valor... – resmungou.

– Se refere a isso? – Ela apontou para a coroa. Depois, mirou o anel na própria mão. – Acha que estou falando com você após a minha morte?

– Você está morta – Luc afirmou, porém a desconfiança começava a espreitar. Se a Rana estivesse mesmo morta, como poderia invadir seus sonhos? Ele não era mais um garoto e sabia a diferença entre um sonho de criança e uma intervenção de um ghaya. Aquilo era, definitivamente, uma intervenção. Não somente uma intervenção, mas uma mensagem do inimigo dentro do coração da sua tribo... Se alguém descobrisse que estava recebendo ordens de Merab enquanto dormia, aí, sim, ele estaria em perigo.

A Rana ergueu o queixo, orgulhosa e pensativa.

– O que é a morte?

Luc percebeu que ela se esquivava da pergunta. Mas a delicadeza não era seu forte.

– Algo que aconteceu a você – rebateu ele.

A Rana abriu um sorriso triste. Ela deu um passo à frente, saindo da áurea esbranquiçada que a envolvia, como se estivesse flutuando no meio da tenda. De repente, ela estava ali, bem ao lado da sua cama. Luc sentiu que se apoiava sobre os cotovelos. Não tinha forças para se sentar, muito menos para se levantar e se curvar, mas a Rana não parecia se importar. Ela caminhou até a entrada da tenda, desatou o laço que a fechava e deslizou um dedo pelas beiradas, abrindo uma pequena fenda, por onde espreitou a tribo silenciosa. Àquela hora, a maioria das tendas estava fechada. Após a queda dos Maël, até mesmo os filhos de Babakur temiam os perigos da mata à noite. Apenas alguns guerreiros bebiam ao redor de uma fogueira, acompanhados de suas mulheres.

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