O corpo todo doía quando ele acordou, mas principalmente a cabeça, que latejava constantemente. A essa altura da vida, já estava acostumado a começar o dia se sentindo péssimo e terminar pior ainda. Imaginava que deveria existir, para pessoas como ele, alguma oração ou pedido aos deuses que ajudasse almas perdidas a se conformar com uma rotina de dor e solidão. Mas, se houvesse, não conhecia uma que surtisse efeito.
Ainda amanhecia quando abriu os olhos, apesar da exaustão. Acordar cedo era um costume antigo, que carregava desde a barriga da mãe. Foram poucas as manhãs em que dormira mais profundamente. Haviam sido aquelas em que tivera Hannah em seus braços, acompanhado da ilusão de que eles conseguiriam ter um futuro juntos. Agora, já sabia que estava sonhando como um tolo.
O tema mórbido do baile da noite anterior não inibiu a corte palaciana, que festejou até o raiar do dia. Noa passou, solitário, pelos corredores vazios do Palácio e só esboçou um sorriso quando percebeu um pé atrás de uma cortina, acompanhado de um ressonar baixo.
Os palacianos sabiam festejar, mas, nem sempre, encontravam o caminho da própria cama.
Ele atravessou o salão principal, já limpo e livre dos resquícios da festa, e saiu para o ar livre, respirando fundo.
Os raios de Amandeep ainda estavam pálidos e a brisa era fresca. Um guarda palaciano fez uma mesura diante do Raj e, em seguida, esfregou uma mão na outra, levando-as à boca. Noa ainda não se acostumara com a capacidade dos palacianos de sentir frio.
Com passos pesados, ele caminhou até as cocheiras. O caminho era curto, mas parecia longo. Odiava essa sensação de que cada metro vencido era uma batalha árdua.
Desde o assassinato dos seus pais, ele sabia que o luto era como uma corrente pesada que desacelerava os seus passos. Tudo o que antes fazia sem ao menos pensar, passara a ter um novo tempo. Levantar da cama era mais difícil, o almoço tinha menos gosto e cada garfada era mais lenta e desinteressada.
Quando ainda se sentia jovem, ele encontrara na cavalgada um modo de se libertar dessas correntes. O passo rápido do cavalo, o vento no rosto e as lembranças com o pai o levavam para memórias queridas. Ele quase podia sentir que ainda tinha onze anos e um futuro esperançoso à frente.
Lá estava ele, Noa Rariff, o futuro kral de Adij Rariff, com a benção de seus pais e dos deuses.
Agora, diante de Brahumin, ele desejava retornar a esse estado de espírito, quando ainda conseguia fingir.
Porém, sabia que, se sua vida tivesse seguido como desejara, não seria ele em cima do cavalo negro e arredio.
O cavalo não se inclinou, nem se abaixou. Cabia a ele, mesmo que fosse o Raj, se esforçar para conquistá-lo. Cinco anos haviam se passado desde que ele decidira montá-lo. Os primeiros meses foram um desastre. O cavalo o renegava, o derrubava no chão e, se ele não tomasse cuidado, o pisotearia. Estava mais que arredio: estava raivoso. Odiava Noa e qualquer um que ousasse se aproximar dele.
Os cavalariços praticamente imploraram para que desistisse. Apesar de não duvidarem do talento de Noa em cima de um cavalo, montar um cavalo d'água ainda era uma missão para poucos. Ninguém queria insultar o Kral, mas tinham ainda mais medo de que ele se ferisse – e largasse os dois reinos à deriva.
Mas Noa não queria desistir.
Não, estava determinado a fazer com que Brahumin o aceitasse. Não como dono, mas como um companheiro, um parceiro de caminhada.
Me leve aonde ela iria.
Me mostre o que ela sentiria.
Cinco anos depois, podia dizer que havia conseguido. No início, Brahumin não ficava preso nas cocheiras como os outros animais. Noa precisava buscá-lo, geralmente no final da praia, para, então, tentar montá-lo. Hoje, ele já o encontrava na mesma hora de sempre, com o raiar do dia, ao lado dos outros cavalos. Não facilitava para Noa abaixando-se como fazia quando a rani queria montá-lo, mas permitia que o fizesse e, assim que o Raj estava seguro, partia pela areia.
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O Portal IV - Fios de Alim - Degustação
FantasyLANÇAMENTO EM 21 DE OUTUBRO DE 2024 NA AMAZON Cinco anos se passaram desde que a terra se abriu e, no lugar da Torre do Arzhel, não sobrou nada além de cinzas e uma fenda de morte, o Abismo da Rani. Noa Rariff é Raj e Kral, dois soberanos em um, mas...