WILL'S POV
— Tchau gente! Até amanhã! — Me despeço dos meus amigos na porta do chalé dos monitores após nossa noite de vinhos, queijos e fofocas, como costumávamos chamar, e me sinto renovado para a semana que virá, mesmo que seja cheia de atividades e a correria de acomodar todos os novos campistas.
Estou pronto para entrar e arrumar a confusão que a cozinha e a sala do chalé ficaram, mas então, no meio da noite, bem depois do meu grupo de amigos já ter se dispersado para seus chalés, vejo uma figura marchando em minha direção. Parece uma assombração a primeira vista, uma figura toda de preto, alta e magricela, mas então reconheço.
Nico di Angelo tinha resolvido dormir no chalé hoje? Que coisa estranha. Não entendo porque ele esta andando tão rápido, e meu cérebro enevoado pelo vinho não está nem um pouco afim de entender, então apenas dou de ombros e me viro em direção a entrada do chalé, indo cuidar da minha vida.
Deixo a porta aberta, para evitar um show que estou quase certo que vai acontecer assim que Nico passar por aquela porta, então começo a arrumar as taças e pratos tranquilamente, quando ele entra, avoado.
— Você estava fazendo uma festa no chalé? Sem eu saber? — Ele parece genuinamente ofendido e eu não entendo muito bem o motivo. Ele queria ter sido chamado? — Will, você sabe que isso não é permitido, muito menos no chalé dos monitores!
— Menos discurso moralista e mais realidade, di Angelo. Ta chateado porque? Queria um convite? Vou me lembrar disso da próxima vez. — Ele suspira, passando as mãos pelos cabelos naquele ato nervoso e fecha a porta do chalé. Me levanto da mesinha de centro e caminho até a cozinha, para lavar e organizar tudo. Escuto os passos de Nico atrás de mim e me apoio no balcão da pia, ainda de costas para ele.
— Não tem nada a ver com isso. O que você faz ou deixa de fazer aqui não é problema meu, até que algum dos diretores descubra e aí sim, isso se torna problema meu. — Me viro na sua direção e vejo que cruzou os braços sobre o casaco preto, apertando os próprios bíceps para evitar de mexer no cabelo e deixar que eu perceba que ele estava nervoso.
— Certo. Se estivéssemos em outro contexto eu deixava isso passar, mas meu humor se renova com vinhos e queijos, então vou fazer diferente. — Antes que Nico fale ou eu mude de ideia, pego duas taças limpas nos armários e abro a geladeira, onde estava uma garrafa de vinho ainda fechada. Abro, e coloco as taças na ilha da cozinha, na frente de Nico, que encara tudo de cenho franzido. Suspiro, ao ver que ele ainda não entendeu o que eu estava fazendo. — Sério, Nico? Isso é uma oferta de paz. De verdade dessa vez. — Reitero, e sirvo na frente dele uma taça de vinho, enquanto preencho a outra com água e pego-a. — Já bebi demais por uma noite. Mas acho que você precisa relaxar.
— Nada me prova que você não está tentando me matar envenenado. — Nico acusa, ainda de braços cruzados e alternando seu olhar entre a taça e eu.
— Você não muda nunca né? — Suspiro, e dou um longo gole na taça dele, engolindo o vinho para ele ver que não estava envenenado, mesmo que eu tenha aberto uma garrafa fechada na frente dele. — Satisfeito? Sem tentativas de morte essa noite. Talvez amanhã. Mas hoje eu só quero conversar, tudo bem? — Enxugo a boca com as costas da mão e Nico acompanha o movimento. Depois, descruza os braços e passa as mãos pelo cabelo uma vez antes de beber um longo gole da taça de vinho, quase sem respirar. Na verdade, ele bebe a taça toda. — Uau, eu não estava esperando por isso. Fica a vontade.
Indico a garrafa de vinho a nossa frente e ele assente, mas não a pega para encher a taça novamente. Enquanto isso ele apoia as mãos na ilha de mármore, tensiona os músculos e abaixa a cabeça, suspirando. Observo a cena encostado no mármore da pia, bebericando minha taça de água, até que ele se sinta confortável para falar.
Eu não lembro a última vez que eu e Nico estivemos com a bandeira branca levantada como agora, mas eu sei que tinha muito tempo. Talvez naquele verão, onde tudo aconteceu... Mas isso sim tinha tempo. E era outro tipo de situação. Isso, é diferente.
Hoje não estávamos com vontade de brigar. Nico poderia ter negado a taça, a conversa, poderia ter me mandado para aquele lugar e estaríamos agora catando cacos de vinho de algumas taças quebradas pelo chalé. Mas Nico só precisava conversar. Eu tinha álcool na cabeça e depois da minha conversa com Rachel, uma sensação nova no peito. Falta de vontade de brigar também.
Então hoje, era uma noite atípica. Talvez as constantes brigas ao longo da semana tenham resultado nesse momento.
— Certo. Tudo bem. Uma noite não vai me matar. — Nico diz, então tira o casaco preto e fica só de camiseta, também preta, mas dessa vez estampada com a banda brasileira que eu era fã, Legião Urbana. Fico encarando Nico e o movimento que ele faz por tempo demais, e o mesmo percebe, mas resolve não comentar nada. Em vez disso, ele enche taça de vinho mais uma vez e a bebe, dessa vez mais devagar, mantendo seu olhar fixo no meu.
— Legião Urbana? Que bom gosto. — Comento, e vejo pela primeira vez em bastante tempo Nico me dar um sorriso não irônico. É pequeno, mas consigo ver seus longos caninos despontarem. Tenho vontade de comentar sobre o quanto eram bonitos, e como ele ficava melhor sorrindo de verdade, mas não acho que estamos nesse nível ainda. Porém deixo o comentário guardado no fundo da minha cabeça, para algum momento oportuno.
— Você conhecer Legião Urbana me pegou desprevenido no dia da fogueira.
— Você lembrou. Da minha sugestão.
— Eu ia concordar com você. Mas não estava muito afim. — Comento, dando de ombros e sorrindo, para que ele perceba que era uma provocação leve. Ele sorri, e agora tenho uma visão completa dos seus dois caninos e dos dentinhos da frente, aqueles que eu conheço a tanto tempo e nunca vi mudarem, de verão em verão. Ele nunca usou aparelho, e isso dava um charme especial. Mas ele nunca ia saber isso vindo de mim.
— Claro que não. — E aquele sorriso gatuno, milagrosamente aberto para mim nesse momento, se matem quando ele pega a própria taça e a garrafa de vinho e caminha em direção ao sofá. — Se você tá afim de conversar, eu não tô afim de fazer isso em pé. Vai ficar aí? — Nico chama, já sentado no sofá, e as vezes eu esqueço que durante esse verão, o chalé também era dele. Que íamos ficar juntos ali por três meses. E o verão seria muito, muito longo.
Me senti na outra ponta do sofá, encostado no braço, enquanto Nico tinha feito o mesmo no lado esquerdo, com seus pés cruzados, que só agora eu tinha percebido que estavam cobertos por um par de meias pretas, com ETS verdes fluorescentes.
— Meias de ET? Você me surpreendeu. — Comento, ao passo que Nico olha para os próprios pés, como se só agora percebesse o que estava calçando.
— Acredite, dessa vez eu não estava tentando.
— Dessa vez?
— Eu sei que você percebe tudo o que faço, Will Solace. Você disfarça bem mal as vezes.
— Culpado. Mas eu também sei quando você olha.
— As vezes. É inevitável. — Nico fala a última parte sussurrando, e mesmo que estivéssemos a uma distância segura, estávamos sozinhos, num silêncio preenchido apenas pelo titilar das taças de vidro e nossas respirações pesadas. Era como se só agora eu estivesse vendo aquele Nico di Angelo que todos os amigos falavam. O que sorria com facilidade. O que não tinha vergonha de falar. Era alguém completamente novo do Nico que eu conhecia, ou pelo menos daquele que ele me mostrava.
Eu sei que aquilo era culpa do vinho e provavelmente do dia cansativo que ele teve, fora o álcool que corria pelas minhas veias, mas era um momento especial. Eu sabia que era, mesmo que eu não quisesse que fosse e muito menos que fosse com ele, estava acontecendo e não tinha como evitar.
Talvez... aproveitar?
— Certo. Vou acreditar que você me observa sem ser com desejos homicidas. — Comento, para ver se o clima alivia e Nico sorri, e agora sim eu consigo ver aquela minúscula covinha na sua bochecha esquerda, que só aparecia quando seu sorriso era largo, como agora. Era realmente um momento especial a noite de hoje.
— Acredite no que quiser, Solace. Depois não diga que não avisei. — Nico me observa com intensidade, lambendo os lábios sorrateiramente, mas para deixar claro que me olhava. E eu nunca me senti tão observado na vida. E talvez, desejado? Ou o álcool continuava a confundir meus sentidos?
— Certo... Mas e hoje? O que aconteceu?
— Pra ser sincero? Nada. Foi só mais um dia ruim. Eles acontecem esporadicamente, não tenho como evitar nem prever. — Ele dá de ombros, cabisbaixo, e vejo como não gosta que isso aconteça e muito menos de ter que falar sobre isso. — Meus amigos entendem, mas eu ainda prefiro me isolar. Nesses dias eu fico cansado, sem vontade de levantar ou fazer algo. É assim desde que a Bianca morreu. A Hazel passa pelo luto de uma forma diferente, mas pra mim... Foi difícil. Para caralho. Até hoje é.
Bianca di Angelo... A irmã mais velha de Nico e Hazel que morreu tragicamente eletrocutada alguns anos atrás, salvando a vida de um bebê enquanto voltava de um de seus treinos de arco e flecha. A notícia foi chocante para todo mundo do acampamento, já que ela era uma veterana e vinha todo verão com os irmãos.
No ano seguinte, nem Hazel nem Nico voltaram para o Acampamento naquele verão. Todo mundo sabia que a família estava passando por altos e baixos, mas o Nico... Ele entrou em depressão. Aquilo foi demais pra ele, e só dois anos depois da morte da irmã eles conseguiram retornar, mas fazia pouco tempo que as coisas tinham voltado ao normal.
Para Nico pelo visto, as coisas ainda eram mais difíceis do que eu imaginava.
— E o que você faz quando os dias ruins chegam? Duvido que tenha um Will Solace e uma garrafa de vinho te esperando toda vez. — Tenho medo que Nico não curta a piada por conta do clima, mas ele sorri e encosta a cabeça no sofá, me olhando de lado.
— Bom, quando eles chegam e eu não dou a sorte de encontrar uma garrafa de vinho e um loiro irritante me esperando, — o chuto de leve mas Nico apenas segura meu pé, o empurrando de volta, no clima de brincadeira. — eu faço o que me lembra ela. Converso com seus animais favoritos, colho suas flores, fico um pouco com a Hazel, conversando sobre nossas lembranças da Bi. É uma forma de não deixar que a minha irmã se vá por completo. Ela fica viva, no meu coração, e a saudade aperta menos. Mesmo que tenha dias que a dor é tão insuportável que eu não consigo me mover. Só... dói.
Fico sem palavras por alguns momentos, então faço algo imprudente, tomado por uma coragem que não me pertence, mas resolvo não pensar muito no momento.
Me aproximo de Nico no sofá, lentamente, esperando que ele se afaste, levante ou quebre o encanto a qualquer momento. Mas ele apenas fica parado, me olhando, esperando ver até onde irei. Até onde minha coragem movida a álcool vai.
Pouso minha taça de água na mesinha de centro e repito o que tentei fazer na noite da fogueira, esperando que a reação dele fosse diferente. Aproximo minha mão da sua cabeça, mas especificamente para o seu cabelo e Nico não se move, não se afasta nem tenta me afastar, apenas fica parado, virado de frente para mim, me encarando, quase como se não respirasse.
Tenho a sensação que também estou prendendo minha respiração até colocar minhas mãos naquele cabelo outra vez e sentir a maciez dos fios a tanto tempo esquecida pelo meu tato. Nico fecha os olhos devagar, como se tivesse medo de aproveitar o momento por completo, e não posso deixar que isso aconteça. Pelo menos, não hoje.
— Tá tudo bem ter dias ruins. Eu tenho vários. Só não acho que você precise passar por todos eles sozinho. — Sussurro para Nico, com medo do que as minhas palavras vão fazer com ele, mas ele abre os olhos e vejo um leve marejar por ali.
— Eu só... — Ele respira fundo e eu faço um cafuné em seu cabelo o que faz com que ele suspire, ainda me encarando. — Isso me lembra outro verão.
— Um verão bom?
— Você sabe de qual verão eu tô falando. — Nico fala baixo, se aproximando, e não ouso tirar minha mão de seu cabelo. Mas ele tinha razão. Eu sabia exatamente de qual verão ele estava falando. O verão onde tudo mudou. Aquele verão.
— Eu lembro disso... A gente brigava menos.
— Você me abraçava mais. — E é isso. Com quatro palavras sussurradas em meio a uma síncope de vinho e uma noite quente de verão num chalé vazio, eu puxo Nico para deitar em meu peito, como fazíamos a vários verões atrás.
Tenho medo de que não nos encaixemos mais ou que isso seja estranho, mas Nico coloca sua cabeça perto do vão do meu pescoço numa sensação familiar, e pousa seus braços ao redor da minha cintura, da forma protetora que ele costumava fazer.
— Isso vai ser um arrependimento amanhã, não vai? — Pergunto baixo, soprando para os cabelos macios de di Angelo que concorda com a cabeça, mas não se afasta. Pelo contrário, parece se enrolar mais em mim, como se só agora se lembrasse de como era fazer isso e do quanto ele gostava.
— Vai. E não vamos nunca falar sobre isso da mesma forma que nunca falamos sobre nosso passado. Mas hoje a noite, Will, podemos só tirar proveito da vulnerabilidade dos dias ruins e do vinho? — O pedido dele é tão sincero e baixo que não vejo escolha a não ser acatar e passar meu braço ao redor de seus ombros. Pelo menos essa noite.
— Podemos. Sem amanhãs...
— Vivendo os hojes. — Nico completa nossa frase e acho que ele ia dizer mais alguma coisa, mas muda de ideia e afunda mais em meu peito.
Amanhã seria mais um dia normal, onde eu e Nico lembraríamos de tudo de ruim que fizemos um pro outro, de todas as palavras e socos trocados. Onde nosso ódio ia prevalecer, pois éramos orgulhosos demais para conversar sobre o que aconteceu e porque nossos corações estavam machucados.
Mas hoje não era amanhã. Hoje era a noite onde Nico dormiria deitado em meu peito com minha mão em seu cabelo e seus braços na minha cintura, como se nada tivesse mudado. Hoje era a noite onde culparíamos o álcool por tudo o que dissemos e fizemos, mesmo sabendo que não era verdade. Nosso bom senso não estava no "hoje". Ele viria amanhã, com a vergonha e o arrependimento.
Mas hoje? A nostalgia dominou. E eu não costumo lutar contra sentimentos raros como esse.🏕️ — ☀️
A manhã seguinte não foi esquisita como eu pensei que seria pois quando acordo, Nico não está mais lá. A cozinha e a sala estão limpos e é como se eu tivesse passado a noite sozinho. Verifico meu celular e vejo que ele mandou uma mensagem.
Nada além do comum, e não é como se eu esperasse que virássemos amigos agora.
Isso não nunca mais vai acontecer.
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last summer - solangelo
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