Parte 5

34 5 23
                                    

O barulho de algo cortando o vento foi ouvido, mas nada além disso surgiu no ambiente, até que dois corpos caíram para a parte iluminada, deixando as cabeças rolarem aos pés de seu capitão. A ruiva também não viu nada, mas já imaginava o que era. De forma ágil, virou de costas e atirou na cabeça dos dois atiradores posicionados atrás de si simultaneamente com suas armas.

— Eu ainda não recebi o meu baú do tesouro, capitã Fortune. Nem pense em morrer, antes de me deixar em terra firme com minha recompensa — finalmente a figura de Samira surgiu da escuridão para a luz que entrava pelo corredor.

A noxiana tinha um corte no abdômen e ao se mover, o sangue escorreu como uma cascata, mostrando a profundidade no ferimento que nem parecia sentir, apesar da sua respiração ofegante.

— Está ferida — repetiu Sarah, sentindo seu raciocínio dar lugar a um frio na barriga desconhecido por um momento, mas logo se virou para o capitão novamente, pegando o homem pela camisa e o puxando com violência — Você tem um médico, transporta pessoas em longas viagens, então TEM que ter um médico!

— Talvez eu tenha um médico — o sujeito respondeu calmo, sem demonstrar pressa alguma ao ver que tinha o controle da situação novamente.

Com os dentes cerrados e o olhar estreito na direção do inimigo, Fortune pegou a espada de Samira e cravou a lâmina direto na mesa, arrancando a mão direita do capitão.

— Ótimo, agora você também precisa de um médico, ou vai sangrar como um porco até morrer. Vamos ver o quão rápido você o encontra!

"Agora eu entendo o motivo de ela ser a capitã e também a comandante de Águas de Sentina. Ninguém poderia ir contra essa inteligência em momentos que qualquer um deveria paralisar. A caçadora de recompensas é mais do que isso, ao que parece!"

Foi só o que Samira pensou, antes de seus sentidos falharem com a visão escurecendo antes de seu corpo cair num estrondo sobre o assoalho, o que nem sequer foi capaz de sentir, já sem consciência.

Quando a noxiana despertou, já era noite. Demorou vários segundos para reconhecer o quarto de Fortune com suas luzes fracas amareladas. Se viu literalmente acorrentada à cama, incapaz de soltar os pulsos e viu também o curativo em seu abdômen, que ainda doía ao menor movimento.

A luminária estava ligada sobre a mesa, onde alguns papéis se encontravam também, um claro sinal de que alguém estivera ali não tinha muito tempo.

Samira tentou se soltar sem sucesso usando a força, então observou tudo a sua volta, buscando alguma solução. Não muito tempo depois, virou o corpo, alcançando com o pé a madeira da cabeceira da cama onde estavam presas as correntes. Bastaram alguns poucos chutes para que a madeira cedesse e quebrasse, ainda que a morena tivesse usado muito de sua força para tal coisa. A guerreira estava livre da cama, mas não das correntes presas nos pulsos, então as segurou, pronta para usar o metal pesado como arma, se fosse preciso.

Na mesa, uma folha em branco cobria o que parecia ser a letra bem desenhada da capitã nas páginas debaixo e mentalmente Samira se recordou da caligrafia em documentos assinados por ela no escritório. Havia alguma parte diplomática em ser pirata? Jamais imaginaria.

Cuidadosamente para não sujar o papel ou deixar vestígios, a noxiana puxou a página escrita para que pudesse ler seu conteúdo:

"Ainda que use sua espada, seja também o medo por trás da lâmina
Seja o mar de fúria por trás dos meus olhos, se assim eu puder mergulhar em seus seios

Seja o amor molhado e sangrento, aguçando o instinto feroz por trás de uma heroína

Seja a calmaria sublime e sutil que amansa o animal, a assassina se ainda assim, eu puder despir sua alma

Seja a dor, o mundo de fraquezas que desconheço, seja rainha, seja uma deusa, seja mulher, se assim eu puder deslizar em teu corpo

Um suspiro que seja, minha vida, minha morte, ou meu prazer em seus braços

Seja minha ruína, se assim puder ser minha."

Samira sabia que as palavras de Sarah não a atingiam apenas pela voz sedutora de sua dona, mas também pela audácia e profundidade, mesmo assim jamais esperava ser atingida por elas daquela maneira, ainda mais brutal do que o golpe em seu abdômen. Não sabia o que fazer, o que pensar. A ruiva certamente não esperava que as frases que deixou no papel fossem ser encontradas naquele momento, já que a mantivera acorrentada. Mas não era previsível escapar? Seria mais um plano armado previamente no qual caía sem perceber?

A morena voltou para a cama, sentando sobre o colchão e deslizando a mão por entre os cabelos negros, tentando controlar a respiração profunda. A visão que tinha de Sarah Fortune era outra, depois de ler aqueles versos.

— Então ela é uma artista também — sussurrou baixinho, questionando mais para si mesma.

Na porta do quarto, a figura da capitã tinha uma expressão confusa. De fato, o poema não deveria ter sido lido por ninguém, menos ainda por Samira, mas a reação da visitante não parecia ruim. A ruiva tinha um misto de vergonha, receio e excitação e não sabia qual dos três se sobressaía.

— Mais do que você pensa. Minhas armas foram feitas por mim, eu sou de uma família de artesãos e faço mais do que apenas atirar e matar — respondeu de forma mansa, mas ainda atenta ao rumo daquela conversa — Parece que não sabemos nada uma da outra.

Fortune sentou em sua cadeira, mas dessa vez virada na direção da guerreira noxiana. Abriu as algemas que prendiam as grossas correntes e só então deixou que seu olhar encontrasse o de Samira.

— Por que você me acorrentou aqui?

— Eu esperava manter você imóvel pra que não abrissem os pontos. Embora o médico esteja agora à bordo do navio, não sei até onde posso confiar nele.

A resposta veio em uma sobrancelha arqueada da guerreira, como se fosse mesmo ir contra seu próprio bem estar e saúde da maneira que a ruiva sugeria, mas depois de pensar um pouco, chegou a conclusão de que havia escapado com movimentos bruscos e imprudentes.

— Talvez tenha razão, mas isso só piorou as coisas.

— Talvez você pense que sou boa em piorar as coisas, mas nesse momento estou em um navio lotado de escravos, que navegam rumo à liberdade sem terem lutado por isso, acho que eles discordam.

Nenhuma das artimanhas de Miss Fortune havia deixado Samira tão sem saída, quanto se sentia naquele momento, ao encarar o rosto do qual havia zombado no porto, tendo suas palavras escritas ainda em mente e a declaração do que havia feito para libertar aquelas pessoas. Sarah tinha razão, não sabia absolutamente nada sobre ela, ao menos não até aquele momento.

Mesmo sem intenção, a capitã havia se despido em uma alma muito mais bonita do que todos diziam, ou do que se podia ver, talvez porque ninguém a conhecesse assim, ou vissem apenas o quão bonita ela era em seu exterior e foi com esse pensamento que a noxiana a puxou para um beijo ardente, entrelaçando uma das mais em seus cabelos avermelhados ao puxá-la em direção a sua boca, tomada por todas as sensações que antes disse não sentir.

Mulher, ou abismo? Miss Fortune e SamiraOnde histórias criam vida. Descubra agora