Praias brancas e amarelas, neve peroladas e ensanguentadas

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A estrada está escorregadia por conta da neve, é a primeira vez que a vejo. Meu irmão e eu viajamos para Santa Catarina para irmos a praia de Garopaba.
A maioria das pessoas vão à praia quando o dia está quente e os raios de sol penetram nossa pele, mas meu irmão não, ele gosta de ir à praia quando ela está fria e o clima fechado, se chover, ele considera sorte. Eu não sou curto tanto, na verdade, para mim tanto faz as praias estarem amarelas ou brancas, vou apenas para acompanhá-lo. Acho o clima das praias amarelas animado e agradável, e o clima das praias brancas triste e calmo, nessa última a única faísca de felicidade que vejo é o sorriso do meu irmão.
O céu está tomado por nuvens pesadas e num tom de azul tobolto, sim essa cor existe. A única coisa que se escuta é o barulho da maré e algumas gaivotas. Descemos do carro e meu irmão correu na direção do mar, eu corri logo atrás.
Ele parou no fim da areia branca.
Levantou os braços e sorriu.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro!
— Por quê gosta dessas praias?
— Tá sentindo?
— O que? O cheiro debaixo do seu braço?
Ele riu
— Não, a liberdade. Não sente como se pudesse tirar as roupas, chutar a areia e ninguém te julgaria?
— Eu te julgaria.
— Estou falando sério, Victor — ele empurrou meu ombro.
— Se estivesse sozinho faria isso?
— Talvez.
— Feche os olhos, Victor, respire e sinta a brisa bater em seu rosto.
— Se alguém nos visse agora pensaria que somos um casal.
— Não pensariam não, sou bonito demais para você.
Fiz uma careta e David protestou.
— Anda, fecha.
Sem mais desculpas fechei os olhos e respirei fundo.
— Se desligue do seu corpo, escute os sons ao seu redor. Escute somente as ondas do mar e você será a maré, escute as gaivotas e estará voando.— meu irmão não é coach ou hiper, pelo menos acho que não, só tem um parafuso a menos mesmo, mas às vezes, poucas às vezes, ele parece ser a única pessoa sã do mundo, a única que sabe toda a verdade e enxerga coisas nas quais não vemos.
— Escute seu irmão e ficará louco igual à ele.— brinquei e David deu um tapa na minha cabeça.
—  Pare de zoar.
Sentamos na areia igual fazíamos quando crianças.
— Sabe no que eu penso sempre que estamos na praia?
— Ah, você pensa?
Ele ignorou a brincadeira.
— Na primeira vez que vimos uma. Você não se lembra, tinha algumas semanas de vida. Mamãe e papai estavam indo para Salvador visitar a tia Rita. Eles estavam tão felizes, papai brincou que se você chorasse demais o colocaria no mar Igual ao menino Moisés, eu pensei que ele falava sério então o repreendi e pedi para a mamãe que eu o segurasse, fiquei com você no meu colo pelo resto do dia, e de olho no papai pelas próximas duas semanas, só me aquietei quando ele levou um fotógrafo em casa para tirarmos em retrato de todos nós. Na minha cabeça ele entendeu que você fazia parte da família.
Mamãe e papai morreram quando tinha 2 anos de idade e David 8, depois disso passamos alguns meses em um orfanato até que nossa vó Virgínia decidiu nos adotar.
— É meio estranho ver você falar disso, quando tinha 6 anos disse que fui achado no lixão.
Dessa vez David não se importou em dar um sorriso disfarçado.
— Eu me importo com você Victor, você é parte de mim, sempre serei grato por abrir meus olhos e me trazer para isso.
— De nada!—Respondi meio perdido— É por isso que gosta de vir à praia? Quando viemos pela primeira vez o clima estava assim?
— Não, naquele dia ela estava tão amarela quando sol, apesar de estar fria. Gosto das praias brancas e solitárias porque é o único lugar onde não somos vigiados, onde a sociedade não nos observa, eu acho.
— Entendi, longe da sociedade moderna e julgadora.
David me olhou com um sorriso divertido e imperativo, como se eu fosse uma criança inocente. Tive a impressão que se viesse um tornado em nossa direção ele ficaria no mesmo lugar, com a mesma paz, mas quando viu um grupo de jovens se aproximando logo atrás, ele olhou mais uma vez para o mar, se despedindo, pegou no meu ombro e disse que era hora de irmos. Não recusei, me levantei e entramos no carro. Não é a primeira vez que isso acontece, se não estamos só eu e ele na praia, não é diferente para ele, continua sendo só mais uma praia.
Percebi que David só gosta das praias frias porquê mais ninguém está lá para aprecia-las, se ninguém está lá, ele também não é observado.
Apesar da música que colocamos na playlist de viagem, ser calorosa, quando estávamos na estrada vi um pontinho branco caindo sobre o para brisas, depois outro, e outro, e mais centenas. Neve.
A previsão do tempo dizia que poderia nevar por algumas horas nas regiões mais frias do país, mas não pensamos que seria verdade, avisaram o mesmo no ano passado e no retrasado, mas tudo o que houve foram ventos gelados e fortes.
David e eu nos olhamos espantados e impressionados ao mesmo tempo. Também o segui quando ele saiu do carro e correu para fora para que a neve caísse em seu rosto, assim como fiz quando ele correu para o mar.
Ele abriu os braços e ergueu a cabeça aos céus.
— Aqui? No meio da estrada?
— Não tem ninguém aqui!— respondeu com um sorriso de orelha a orelha. Eu sabia que não tinha, ele não faria isso se houvesse alguém aqui, não deixaria que vissem seu lado "Anne" — Vamos, tente!
Olhei em volta, somos só nós, ninguém da escola verá.
Ergui o rosto para o céu, o céu branco e iluminando. Quando o primeiro floco de neve caiu, senti seu toque gelado derretendo no meu rosto, foi como ser beijado por fadas, por centenas delas.
Mais tarde, quando estávamos quase saindo de Santa Catarina, quando pensamos que a neve acabaria e o céu azul fluído e o sol dourado voltariam a prestigiar nossa pele, a neve não acabou, pelo contrário, passamos por um tempestade de neve. David dirigia o carro com dificuldade por conta da adestrada, nunca dirigimos na neve, não enxergavamos nada com a  neblina, por sorte, acho que só estamos nós na estrada. A previsão não avisou nada sobre tempestade, principalmente de neve.
Me assustei quando David saltou do banco e girou a chave, ele está impaciente.
— Não acha melhor esperarmos a tempestade passar?
— Acho que ela não vai passar por agora.
— A previsão não avisou nada sobre, talvez passe.
— Victor, faz quarenta minutos que estamos aqui.
— Está estressado porque? Ficar sozinho com a neve não é tudo que queria?
— É! Mas isso tá estranho demais.
Ele puxou a marcha e arrancou com o carro, desligou a música e ficou em silêncio. Nunca vi David dirigir tão rápido assim. Eu quero avisá-lo mas sei que está nervoso, ou pior, com medo.
— Quer dizer alguma coisa, Victor?
— Não, por quê?
— Conheço você.
— Eu acho que poderia dirigir mais devagar, pode acabar machucando alguém.
Ele pigarreou, percebi que seu olhar estava estranho, era como se ele soubesse o que ia acontecer naquela tarde.
— Não há ninguém aqui além de nós, Victor.
— Como sabe? Não enxerga nem mesmo a estrada com toda essa neve.
— Porquê eu sei.
— Acho que está na direção errada, já era para termos saído de Santa Catarina.
— É, eu sei.
— Então porque não muda de direção?
— Por que vamos acabar no mesmo caminho.
Ele pisou no acelerador.
— David, David, para o carro.
— Eu não consigo, o freio não funciona.
Tudo o que lembro foi o rosto de desespero de David me olhando, depois o baque. Me lembro também de David saindo do carro, o vi pela janela, vi seus tênis novos em frente á sapatos pretos e polidos, e vi sangue espalhado pela neve.
Quando acordei, estava na cama de um hospital, com minha vó Virgínia ao lado, duas semanas depois estava na sala de uma delegacia á esquerda do meu advogado, eles acharam estanho meu relato, não havia neve naquele dia, nunca houve, as praias realmente estavam frias mas a estrada para Santa Catarina estava ensolarada, chegaram a acreditar que eu estava mentindo e havia matado meu irmão, ele realmente não havia morrido no acidente, e sim depois dele, havia se esfaqueado. A psicóloga concluiu que tive alucinações depois do acidente.
Por conta de toda essa investigação tiveram alguns boatos que eu matei meu irmão.
O fato que levou eles a concluírem que foi suicídio foi uma carta escrita à mão pelo meu irmão que deixara com seu advogado dias antes para me entregar.
Nela dizia que apesar da diferença de idade, morreremos em uma curta diferente de TEMPO. Pediu para que fôssemos enterrados um ao lado do outro.
Sim ele escreveu  toda a palavra com letras cursivas

Os segredos que os mortos não te contamOnde histórias criam vida. Descubra agora