Uma Canção Inesquecível

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 No dia seguinte, Mariana começou a executar seu plano, no mínimo, arriscado. A rua Serpente, a nova rota que Marcelo orientou os entregadores, era familiar para a nutricionista e tendo isso em mente, decidiu aguardar até os caminhões da Mitchs passarem e segui-los. "Há algo nos produtos, isso é obvio, mas preciso de provas, se não as acusações podem cair em mim...", pensou ela enquanto aguardava em discreta esquina. Finalmente, após horas de espera ela avistou o caminhão amarelo e vermelho e o seguiu da melhor maneira furtiva que conseguiu em seu carro azul, o mais estranho que percebeu durante o trajeto é, ironicamente, a normalidade, esperava se deparar com um depósito abandonado ou um local afastado e ao invés disso o local de destino dos caminhões era um prédio simples no centro da cidade, "bom...isso é inesperado, se eu fizesse algo ilegal, não iria deixar tudo tão óbvio...Quer saber? Deixa isso para lá, devo estar com expectativas muito estranhas", observou enquanto a dor da ferida em sua perna a relembrava do sucesso caótico que estava tendo e do quanto deveria tomar cuidado. Mariana se limitou a observar o movimento do local pelo resto do dia, "quase nenhuma pessoa sai de lá, só os entregadores que saíram para fumar, não há nem vigia nesse lugar!", constatava ela começando a se perguntar se realmente haveria algo de errado ali e de repente, em uma das janelas do pequeno prédio, viu um rosto familiar, sua paciente Beth parada olhando feliz para o céu como se estivesse em êxtase. "Se eu queria um sinal de que eles estão fazendo merda, é esse, só preciso de um jeito de entrar...", e então, uma ideia ousada. Ela se aproximou de um dos motoristas dos caminhões que estava do lado de fora fumando e começou a pedir um favor a ele.

— Oi!Eh...Bernardo, certo? — Falou se referindo ao nome no crachá. — Prazer, meu nome é Mariana. Posso te pedir um favor?

— Olá Mariana. — Disse com malícia no olhar. — O que posso fazer por você?

— Sabe, meu namorado está trabalhando aí hoje e eu queria fazer uma surpresa, hoje é nosso aniversário de namoro. A pessoa que iria abrir para mim entrar teve um imprevisto, poderia por favor me deixar entrar? — Indagou ela com uma voz conquistadora e um sorriso radiante.

— Desculpa, não posso. — Respondeu Bernardo, sem disfarçar a falta de entusiasmo quando descobriu que ela "namorava".

— Por que não? — Questionou mudando seu semblante para preocupação Mariana. — Ele te pediu para eu não entrar, é isso?

— O que? Não, nem sei quem você é!

— Eu sabia, sabia! Aquele vagabundo mentiroso, está me traindo no nosso aniversário de namoro?! — Berrava enquanto lágrimas de crocodilo escoavam e o rosto de Bernardo começava a transparecer pura confusão. — O Marcelo me avisou várias vezes, sabe? "Não confie no José, ele é um idiota", mas quem disse que a burra aqui segue o conselho do melhor amigo? Bernardo, talvez eu apenas mereça me fuder. — Concluiu ela aos "prantos", porém, a única informação que seu ouvinte de fato prestou preocupação foi com o nome que citou, "Marcelo", o nome de seu chefe.

— Calma, qual o nome do seu amigo?

— Marc...elo... — Mariana fingindo um soluçar de tristeza. — Ele disse que iria se atrasar e para eu o esperar lá dentro, ia me ajudar com a surpresa. Ele é um dos chefes daqui.

— Olha... — Bernardo não poderia ligar menor se o suposto namorado a estava traindo ou não, mas não queria arrumar confusão com seu chefe por um engano idiota. — Eu posso abrir para você, só não posso te acompanhar, ok?

— Faria isso? Você é um anjo! — Falou enquanto o abraçava e o deixava ainda mais constrangido.

Bernardo a deixou entrar no prédio pela garagem, para ele não importava o relacionamento de ninguém, entretanto, toda a confusão da situação e a chance de irritar seu chefe o levou a fazer exatamente o que Mariana queria. Enfim dentro do prédio e sozinha em um corredor cinza, a única direção que a intrusa tinha era a que viu Elizabeth, tinha que chegar até o segundo andar. "Este lugar...me dá arrepios, por que tudo parece tão vazio e limpo?", se perguntava enquanto procurava pelo elevador, as salas, o corredor, ninguém estava lá e tudo estava tão organizado, límpido e iluminado que a sensação transpassada era que aquilo era um set de filmagens de um filme de terror. Após andar por longos minutos finalmente ela encontrou um elevador e chegou ao segundo andar, assim que entrou naquela sala um calafrio a tomou, a atmosfera daquele local parecia sentir a presença da bela mulher e grudar nela, "eu sinto, que algo me observa?", indagou a si mesma e como um reflexo ela olhou ao redor e esfregou os próprios braços como se um frio repentino tivesse a atingido, "estou ficando doida com isso tudo!", então ela seguiu, com a dor em sua perna sendo um lembrete constante do cuidado que tinha que tomar e ao mesmo tempo um sinal de sobrevivência. Depois de adentrar ainda mais o andar começou a ouvir murmúrios e os seguiu, quando se aproximou deles viu a sala de origem deles guardada por uma porta dupla negra com detalhes na cor vinho, ouvindo mais de perto conseguiu distinguir do que se tratava as vozes, "é uma canção, só que não sei que língua é essa", e assim que concluiu isso, como um convite sombrio, uma fresta da porta se abriu, a deixando livre para observar o perturbador evento que ocorria naquele grande salão. As paredes dele eram de um vermelho claro e no centro do local um círculo de pessoas com mantos pretos entoavam uma música inebriante e frenética, no meio do círculo estava Elizabeth em cima de uma mosaico redondo, suas cores eram o preto e a turquesa e a figura retratada nela era uma besta disforme irada. Mariana fixava seus olhos em sua paciente, Elizabeth se contorcia como uma aranha e sorria de forma macabra enquanto demonstrava um olhar desprovido de qualquer vontade, "que porra é essa? Tenho que ir embor-!", seu pensamento foi interrompido pelo inesperado cessar da canção.

— Mictlantecuhtli! — Começou a exclamar uma das pessoas de manto preto e todos ergueram um pequeno caldeirão. — Te convoco aqui! Saia de sua prisão e se sacie com esta oferenda. Deus dos Infernos, mostre sua obediência e cumpra o acordo!

Ao término desta frase, um urro gutural que trazia fúria, dor e fome ecoou pelo salão e o mosaico começou a tremer, das frestas dele um líquido viscoso e escuro começou a surgir e formar um ser, uma ave grotesca com feridas pútridas, sua forma deformada aparentava ser um misto de morcego e coruja. A criatura urrou novamente e avançou até Elizabeth e começou a consumi-la como um animal faminto, porém, Mariana, petrificado com o horror, percebeu que o monstro não comia a carne de Elizabeth, era como se a descascasse procurando por algo e depois de uma agonizantes segundos ele achou, como se arrancasse uma planta de uma terra úmida a ave começou a tirar de sua vítima algo reluzente, depois de concluída a extração consumiu aquilo e Elizabeth parou de se contorcer. O grupo de pessoas começou a entoar uma nova canção e dessa vez quem se contorcia era a ave, um brilho a cobriu e começou a vomitar um líquido vermelho escuro que de alguma forma se movia sozinho até os caldeirões. Ao final deste ritual macabro aquele ser de aparência necrótica se silenciou, ficou parado como uma estátua e, como uma coruja, moveu seu pescoço rapidamente e olho com seus olhos escarlates para Mariana. Ela foi tomada pelo medo e correu, a dor em sua perna não importava, seu raciocínio só se concentrava em uma coisa, fugir. Supreendentemente, ela conseguiu, ninguém a seguiu, ninguém se importou com a mulher em pânico que saiu do prédio, os motoristas não estavam mais lá e ela continuou correndo até seu carro, o usou para sair de lá o mais rápido possível, "que merda eu faço?!", se questionou com olhos esbugalhados de pavor. Guiada apenas por seu instinto Mariana dirigiu até seu apartamento com a face estática e assim que entrou nele desabou, com suas mãos na cabeça em sinal de lamento tentava em vão achar uma explicação para o que viu, pela primeira vez, Mariana, a inabalável mulher que sempre acreditou que o mundo era dela, sentiu o desespero de não saber o que fazer. 

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