Um

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Era um dia quente de Setembro, talvez o mais quente que fizeram em Nova Jersey. Eu conseguiria ouvir o som dos pássaros, soando próximos ao vidro da janela, não fosse o jardineiro que cuidava do jardim, com a barulhenta máquina de cortar grama. Virei de cabeça para cima, fitando o teto marfim do meu quarto pela quarta vez em um curto espaço de tempo. Meus olhos fecharam lentamente, minha cabeça doía, então, algumas batidas na porta insistiram em soar novamente, me fazendo despertar daquelas devaneios.

- Senhorita Portilla, me perdoe mais uma vez - já era a quinta interferência de Tereza só naquela manhã - Mas já são onze horas e há um compromisso inadiável daqui a 40 minutos.

Soltei o ar pelas narinas com certo enfado. Queria esquecer que aquele compromisso existia. Aquele que talvez fosse o segundo dia mais difícil da minha vida.

- Tudo bem Tereza, eu já vou levantar! - reclamei sentindo a luz entrar pela porta, agora, semi-aberta - Já disse que não precisa me chamar de senhorita o tempo todo, apenas Annie - disse enquanto ela fechava a porta, à suas costas.

Tereza era uma ótima funcionária, a única da casa que conhecera minha mãe, o que denunciava a idade avançada, papai a confiava em tudo, por isso era a governanta da mansão. Era uma mulher de meia idade, nunca tivera filhos, por isso tinha por mim um carinho de filha, e eu entendia seu zelo e cuidado, mesmo que por vezes julgasse ser exagerado: mães são assim, exageradas e em todos aqueles anos ela fora meu referencial materno.

- Você está cada dia mais linda com essa bandeja nas mãos - brinquei com ela, que esboçou certo contentamento.

- Fico feliz que meu trabalho tenha lhe arrancado um sorriso, não a vejo sorrir a mais de uma semana menina! - ela exclamou, com certo contentamento.

Era o tempo exato desde o falecimento do meu pai, naquela quinta-feira cinzenta, em um voo que sequer era pra ele ter tomado. Carlos, seu sócio iria no lugar dele. Eu sempre brincava que aquela "velha mania de ser perfeccionista" ainda acabaria com ele, mas nem nos meus sonhos mais densos e amedrontadores eu poderia imaginar o poder que aquelas palavras teriam.

Meu pai não era um homem de muitos amigos. Era reservado, discreto. Sempre em seu escritório lendo aqueles livros enormes e empoeirados que tanto me chamavam a atenção, desde quando eu sentava em seu colo, quando criança e passava a folheá-los, sempre sobre o olhar atento dele, sem entender coisa alguma do que estava escrito sobre as folhas amareladas. Ele era um excelente pai. Sempre carinhoso, preocupado, me mimando, me fazendo sentir especial e amada.

- Não é tão fácil sorrir agora - nos silenciamos ponderei por alguns segundos, então tornei a desabafar - Eu sou a única responsável por tudo, minhas preocupações não se limitam mais às minhas aulas, ao que vestir em algum jantar de gala, ou quem Maite vai convidar pra o noivado dela. Agora tenho um império pra cuidar, tenho funcionários a pagar, tenho campanhas assinadas para promover, e eu mal sei distinguir a lapidação de um diamante - suspirei - Não será nada fácil ser a herdeira de tudo isso.

- Entendo Annie - Tereza sentou ao meu lado, olhando-me com ternura - Mas seu pai amaria vê-la mantendo o negócio da família, você sempre soube que seria a dona disso tudo e teria que administrar uma hora ou outra. Não esperávamos que fosse agora, mas infelizmente aconteceu... - disse triste, enquanto ajeitava o café-da-manhã sobre o meu colo.

- Que dia é hoje? - pedi, totalmente alheia ao que acontecia.

- Terça-feira - ela respondeu enquanto abria as cortinas.

- Era pra eu estar me preparando pra aula de ballet...e agora estou prestes a assinar o testamento do meu pai, a vida nos prega muitas peças mesmo - funguei, limpando as lágrimas, enquanto mexia na xícara de café, sem ânimo.

A HerdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora