Aquele sobre a enxurrada - 01/03/2024

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Ontem recebi uma notícia que não consigo tirar da cabeça. O filho de uma antiga prestadora de serviço com quem trabalhei faleceu. O menino tinha apenas treze anos. Uma criança. Uma vida ceifada. Uma mãe torturada.

Ele estava na escolinha de futebol. Por conta do temporal o professor liberou os meninos para irem para casa. O menino estava voltando para casa com o primo e decidiram parar para lavar os pés em uma corrente de água. Mas havia lodo no chão e a corrente estava forte. Ele escorregou e foi levado para dentro do bueiro. O primo, em desespero, foi chamar por ajuda. Começou então uma busca pela rede de esgoto, até que finalmente encontraram o menino. Ele foi arrastado por duzentos metros na enxurrada e teve uma parada cardiorrespiratória. Uma funcionária de uma unidade básica de saúde das proximidades prestou os primeiros socorros, realizando o RCP, e ele foi levado com sinais de vida para o hospital. Chegando lá ele sofreu a segunda parada cardiorrespiratória e não resistiu.

A notícia comoveu a todos no trabalho, como se cada uma ali pudesse sentir um pouco da dor daquela mãe. Aquelas que têm os próprios filhos sempre diziam "Não quero nem imaginar", enquanto eu pensava "Espero nunca ter a chance de precisar imaginar". A notícia foi televisionada e a dor no rosto daquela mãe me assombra desde então. Não sou capaz de escapar das conjecturas, elas me perseguem como fantasmas atrás de respostas. E se o menino tivesse se atrasado, porque dormiu demais, ou porque tinha um trabalho importante da escola e tivesse perdido aquele treino? E se ele tivesse precisado cuidar do irmão mais novo? E se o professor tivesse decidido segurar os meninos até que o temporal passasse? E se eles não tivessem parado para lavar os pés? E se o primo fosse maior, mais forte e ágil e tivesse conseguido segurar o menino?

Eu ainda estou aprendendo a entender que a única realidade que existe é aquela em que vivemos, com os fatos ocorridos e sem o teor ilusório do "e se". Nada poderia ser diferente porque ninguém poderia imaginar que essa tragédia aconteceria. Nenhum crime foi cometido. Mas aquela mãe jamais poderá ser recuperada novamente. Suas palavras duras contra suas divindades expressavam sua revolta e o seu desespero. Não existe conforto que possa lhe ser oferecido. Nada nunca poderá ser como antes para ela. A carne e o sangue gerados por ela deixarão de existir e esse vazio testemunhará para todo o sempre o que aconteceu. Isso desrespeita a ordem natural das coisas.

No fim da tarde, quando o menino estaria sendo velado por sua família, nós já não falávamos do assunto há algumas horas. Brincávamos e ríamos todas juntas com os residentes. Planejámos a páscoa. Eu pensava nos meus afazeres para o dia seguinte e no caminho de volta para casa. A vida seguiu em frente muito rapidamente para nós, como se a sombra que pairava sobre nós no início do dia tivesse se dissipado para se reunir completamente onde aqueles que amaram aquele menino se despediriam dele. Isso diz algo irrefutável: a nossa dor é apenas nossa. Mesmo que seja horrível para todos, ninguém sente mais do que aquele que está na pele. Sempre foi assim, sempre será assim. Espero que um dia a memória daquele menino possa voltar a ser boa para quem o conheceu. Espero mais ainda que aquela mãe volte a sentir o amor sem o peso avassalador da dor.

Bruna Leonne

Narrativas de uma PoetisaOnde histórias criam vida. Descubra agora