Escrito em Pedra Vermelha

Capítulo QUATORZE

A lua estava alta no céu. ]

Sentia que estava vivendo um ciclo sem fim de esperança e perda. Violência e calmaria. Minha mente estava gritando e meu corpo paralisado. 

Quando isso iria acabar?

Stone gritou quando Norm cravou os dentes nele e eu sai do meu transe, desespero me sacudindo. Eu não iria ficar parada. Essa luta também era minha. Num impulso, saltei na direção deles, usando todo o meu corpo para empurrar Norm de cima de Stone. Caímos na água gelada e o lobo ganiu batendo numa pedra. Não podia perder o ritmo, porque minha energia estava acabando e sabia que corpo a corpo, não era páreo para um lobo descontrolado. Fiquei em pé, prestes a ir até Stone, quando um rosnado levantou os cabelos do meu braço.

Um lobo cinza enorme, arrepiado e em posição de ataque estava há poucos metros de mim. Esse lobo era meu companheiro, enfim, na pele. Ele avançou com determinação e caí para trás quando ele pulou sobre minha cabeça indo direto para Norm.

Os barulhos atrás de mim eram terríveis e gráficos. Rosnados, pele rasgando e ganidos de dor chegaram aos meus ouvidos como gritos ampliados num tempo que pareceu muito longo. O barulho de água correndo passando pelos meus pés, e de grilos cantando me fez entender que a luta havia, por fim, acabado. Tremendo, olhei para trás e vi Stone parado sobre o corpo em pedaços de Norm. O rio absorvendo para si o sangue vermelho que escorria de ambos. O lobo cinza, mexeu no corpo inerte para se certificar que havia aniquilado o rival, e satisfeito, se virou para mim. Recuei, incerta sobre o que viria a seguir. Stone e o lobo estavam em sincronia? Ou ele também havia perdido o controle?

Ele caminhou na minha direção lentamente, como um predador, e meu coração acelerou.

–Stone, sou eu.--falei, fraca. Ele não demonstrou me reconhecer, mostrando os dentes, desconfiado.--Oi, sou Kate.--tentei novamente, olhando em seus olhos.

As orelhas do lobo levantaram.

Ele me reconheceu?

Ele deu mais um passo, mas foi cortado por um som alto de tiro que por pouco não pegou em sua cabeça. Gritei me jogando no chão e ele passou por mim correndo, se afastando da água e da pessoa que descia em nossa direção. Mãos me ajudaram a levantar, e eu pisquei confusa quando a silhueta tomou forma diante de mim.

Era uma mulher, tão nova quanto eu, mas ao mesmo tempo, com olhos sérios, de íris escuras como a meia noite. Ela tinha cabelo curto, preto e liso, na altura do queixo. Usava uma calça jeans surrada, e um suéter verde escuro. Atrás dela, uma espingarda quase do seu tamanho brilhava ameaçadora. Sua pele e seus traços faciais eram como os da Anciã.

–Você está bem?--ela perguntou, com uma voz melódica e rouca.

–Eu... você atirou nele.

–Ele estava prestes a lhe atacar.--ela se justificou.

Neguei.

–Não, ele nunca me machucaria. Só estava confuso.

–Bem, eu não podia arriscar. Era isso ou apostar sua vida.--ela falou, olhando para o que restava do corpo de Norm com uma careta.--E eu não atirei nele, só o afugentei. Ninguém saiu machucado. Bem, aquele cara sim, mas presumo que ele merecia?

–É, sim.--concordei, confusa com sua tranquilidade.--Desculpe, mas quem é você?

–Sou Kimi Catori.--ela se apresentou.--E você é?

–Hum, sou Kate. E aquele lobo era Stone.--nos apresentei.--Viemos ver a Anciã, somos do clã Licant.

Imediatamente sua expressão se fechou, e ela deu um passo para trás.

–Ah, vocês novamente.--ela suspirou.

–Não estamos invadindo.--me apressei em dizer.--A Anciã nos deu permissão para ficar.

–Claro que ela deu.--ela suspirou.--Vamos voltar para a casa. Você deve estar com frio.

–Não.--balancei a cabeça.--Eu preciso ir atrás de Stone.

–Ele parece se virar bem sozinho. 

–Ele pode estar em conflito com seu lobo. É a primeira vez que se transforma depois de anos, e ele é...–engoli em seco.--Eu não vou deixá-lo passar por isso sozinho, porque sou sua companheira.

Kimi me fitou com uma nova expressão e assentiu, me dando passagem.

–Ele não foi longe, você pode alcançá-lo se mudar para pele.

–Eu não consigo mudar.--confessei, sem jeito. Ela franziu, cheirando.

–Você cheira como lobo para mim.--ela deu de ombros e  se afastou, indo em direção a casa.

Eu cheirava como lobo? Eu estava confusa.

Olhei para onde Stone foi e comecei a correr. Minhas pernas gritaram de dor, mas continuei. Eu não podia deixá-lo ir. Não agora, não depois de tudo. Ele sempre foi meu companheiro? Ele sabia? 

Como não pude enxergar?

Perguntas e perguntas rodavam em minha mente.

"Por que tem coisas que ele já devia ter falado pra você, mas continuam me dizendo que isso é "entre vocês." a voz de Luca veio em minha memória.

"Vejo como ele olha pra você. Desde que ele nos encontrou. Pensei que você havia percebido, mas pela sua cara vejo que não."

"O que eu não percebi?"

"Sério mesmo, Kate?!"

Desviei de uma árvore caída, me sentindo tonta com a realização de que sempre houve pistas. Eu apenas estava muito dentro de mim mesma para perceber. Perdi o sofrimento de Luca, segurei Aiden, me excluí de criar laços com o clã e agora, corria o risco de perder meu companheiro. Gritei, soltando todo o medo e frustração que sentia. Eu era só uma garota ingênua! Vivia protegida demais, rodeada de amor, até sermos devastados por Beur e seus lacaios. Claro que eu não tive chance. Eu e Luca não tivemos chance. Éramos vítimas, mas também somos sobreviventes!

Eu sabia que não podia mudar o passado e esquecer todo o mal que me foi feito. Mas eu podia seguir em frente. Podia escolher viver no presente e esperar por um futuro melhor. E apesar de perder meus pais e meu clã, eu não estava sozinha. Eu tinha uma nova família para voltar. Mas primeiro, eu tinha que trazer o lobo cinza de volta.

Meu lobo cinza.

Meu peito explodiu de calor e determinação, e ao longe um penhasco surgiu na minha frente. Como um último obstáculo. Não hesitei, não parei de correr, nem por um segundo isso iria me deter. Com um impulso, saltei o abismo e quando pousei do outro lado, estava completa. Minha loba me abraçou e eu uivei lhe dando boas vindas.

Me entreguei a transformação, me deixando levar pelo poder e prazer de ser inteira novamente. Eu e minha loba voltamos a ser um só e tínhamos o mesmo objetivo.

Alcançá-lo.