Capítulo vinte e um

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Abigail

Dizem que uma palavra pode doer mais do que um tapa. De fato, o choque contido no impacto da força de uma mão feroz contra sua pele, pode doer por alguns minutos, ou no máximo horas. Contudo, a carga emocional do ato envolto por palavras nada agradáveis, pode abrir feridas internas por anos a fio. E as palavras, em geral, não são nada além de potenciadores de uma cena que pode ficar gravada na alma como as palavras esculpidas nas tábuas dos dez mandamentos, perpetuando-se por gerações. E foi o choque da palma de meu marido contra meu rosto que trouxe-me uma das lembranças mais desagradáveis que, inevitavelmente guardei. 

O termo rica e mimada não fazia jus a minha pessoa, hoje posso ver com clareza. No entanto, há cerca de 15 anos atrás, com apenas 14 anos, eu podia acreditar em qualquer coisa que me fosse dita, principalmente por parte de minha mãe. E as palavras muitas vezes não eram positivas.

— Você é uma menina tão má, quanto a família de teu pai! — ouvi minha mãe dizer e abaixei minha cabeça, sem argumentos e mesmo se os tivesse, os guardaria para mim por medo. Afinal, não era certo rebater a própria mãe — mas, claro, sempre esteve do lado dele. 

— Mas mamãe, o papai não está mais entre nós…— tomei coragem, por fim.

— Sim, eu sei… — ela murchou, sentando-se ao pé da cama forrada por tecidos nobres, os poucos que ainda nos restara — e é por isso que precisa se casar, ou poderemos enfrentar a ruína. Seu pai se foi e seu irmão nos abandonou para alistar-se no exército. 

— Mas mamãe eu não tenho pretendente. 

— Pois isto não é problema, encontraremos um. 

Com efeito, eu gostaria de ter um pretendente. Aliás passara a adolescência e depois a juventude sonhando com um príncipe montado a um cavalo branco, que me resgataria. Do quê ou de quem, eu ainda não sabia dizer. A questão é que nessa época eu ainda era uma adolescente magrela e sem atributos suficientes para me casar, o que fazia qualquer pretendente torcer o nariz e isto tornava a convivência com minha mãe ainda mais difícil. Qualquer “a” dito era motivo de guerra. Depois que o papai se foi (e não digo isso com pesar, pois a relação dele comigo também não fora das melhores, visto que o filho predileto que lhes regalava orgulho, sempre fora meu irmão) o relacionamento mãe e filha pareceu se deteriorar ainda mais, porém, a questão é que depois que meu pai se fora e meu irmão se alistou, passamos a ter algum relacionamento, o que motivou os constantes atritos.

E isto se mostrou visível no dia em que juntei coragem para dizer a minha mãe que não gostaria de me casar naquela idade. Em troca ela me deu vários argumentos.

— A sua avó casou-se com treze e eu também casei bem nova.

— Mas eu não sou vocês mamãe! — atalhei, ouvindo em seguida a mão de minha mãe cortar o ar tão rápido quanto um relâmpago, atingindo em cheio a minha boca. 

— Já disse para não me responder assim, sua filha ingrata! Você é má! Tão má quanto a família de teu pai! — novamente ela fazia questão de esculpir em meu âmago quem eu era, da forma que ela via, ou que queria ver. E eu, com meus dedos pousados na pele que ardia pelas lágrimas salgadas em contato com a sensibilidade deixada pela violência, não tinha coragem para retrucar e dizer que “não! Eu não era má. Eu era boa. Boa demais para ela.”

A cada ano minha mãe se mostrava um pouco mais distante da mãe que me recordava vagamente. Uma mãe que me embalava antes de dormir na infância, com canções e abraços afáveis para espantar os medos noturnos, a qual, a cada dia, se mostrava mais distante e inalcançável, como se tivesse morrido junto com o meu pai. Nossa fortuna só não havia se dissipado totalmente, pelo fato de meu irmão servir com lealdade no exército de Saul. O rei não ousou tomar as terras de meu pai nem a casa onde morávamos, o que seria correto diante da lei que não favorecia muito as mulheres. Contudo, ainda havia um homem na casa, mesmo que este não estivesse em corpo físico, sempre nos enviava uma modesta mesada, fruto de suas economias no exército. No entanto, tal valor não cobria o pagamento dos administradores que cuidavam das terras, o que nos fez despedi-los, bem como os empregados, amas e cozinheiras. Assim sendo, precisei dar conta de todo o serviço da casa e ainda me mostrar uma nobre prendada, linda e perfumada quando algum pretendente aparecesse. Estes estavam se tornando cada vez mais raros ao ouvirem os boatos de nossa decadência. 

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