Prólogo

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Carmelo, Israel, 1006 a.c.

Gael

Eu corria, como se disso dependesse a minha vida. E decerto dependia. Dentro da pomposa casa de Nabal, no Carmelo, pulei, três ou quatro degraus de tijolos de barro, enquanto subia as escadas do corredor, exasperado. Parei no instante em que deparei-me com a porta de madeira escura, talhada à mão. "Decerto morrerei" pensei comigo. "Nas mãos de Davi, ou mesmo de Nabal". Respirei fundo e bati três vezes na porta, a qual foi aberta quase que no mesmo instante por Sarah. "Claro, de todas as cinco damas, tinha que ser esta a me receber." A loira se achava a abelha rainha daquele lugar, empinava o queixo com a altivez de uma nobre da corte, no entanto não passava de uma simples serva. Mas claro, disso ela não se lembrava.

- Por acaso se perdeu, pastor?- inquiriu destilando sarcasmo na voz.

- Preciso falar com Abigail. Agora!-atalhei, sem tempo para suas provocações. Ela soltou um bufar sarcástico, junto com um sorriso de esgar.

- Por acaso enlouqueceu? Aqui é o aposento da senhora Abigail, não é permitido homens, a não ser o marido dela!

- Então peça que ela saia!- atalhei novamente, tentando controlar a voz e a vontade de esganá-la.

-Oque foi Sarah?- Inquiriu Keren, aparecendo na porta. A segunda mais detestável daquele lugar. Eu sabia que também não teria chance de me explicar a ela, uma vez que toda abelha rainha tinha as suas operárias. E era exatamente isso que Keren era. A morena de cabelos cacheados, que sempre ficava enrolando um cacho entre os dedos enquanto esperava uma ordem. De Abigail? Não. De Sarah. Às vezes eu tinha pena dela. Ela tinha medo ou era mesmo burra? Não saberia dizer.

- Esse pastorzinho de meia tijela- cuspiu Sarah, entre dentes- acha que pode chegar aqui, e do nada ter uma audiência com a senhora Abigail?- Pisquei várias vezes tentando assimilar as palavras. "Abigail era uma rainha, afinal?" pensei, soltando um bufar incrédulo. Respirei fundo passando os dedos pelos cabelos e depois a mão pela barba por fazer, fechando os olhos enquanto tentava não cometer um assissinato naquela manhã.

- Prestem atenção- tentei articular com as mãos em rendição, contendo o tom de voz- o que tenho para dizer a ela, é caso é de vida ou morte!

- Então diga o que quer e eu passarei o recado- Sarah deu de ombros, não sem antes mostrar desdém em cada palavra. Eu senti o rosto queimando, os dentes trincando e os punhos fechando com força. Seguidamente, dei um soco no batente da porta, para de alguma forma tentar canalizar a raiva. Ela, fechou a porta no meu rosto, não antes que eu pudesse colocar um pé para abri-la novamente.

- Saiam da minha frente! - impus entre dentes, após espalmar a porta à minha frente. As duas me fitaram perplexas desta vez. Ruth apareceu ao lado de Keren e então eu senti uma pontada de esperança.

- Ai, o que está acontecendo aqui?!- cruzou os braços fitando-me com o cenho franzido.

- Ruth, por favor!- supliquei, juntando as palmas das mãos uma na outra- chame a sua senhora para mim, é urgente!

- Tudo bem, vou chamá-la. - Ruth era uma das três órfãs que chegaram ao Carmelo, há seis anos atrás. Abigail, com toda a sua beneficência, contratou as três como suas damas de companhia. Elas não eram prepotentes como Sarah e Keren e eu até gostava delas. No entanto as três eram completamente diferentes. Laís era doce e resignada. Uma verdadeira cópia de Abigail. Ruth era fechada e introspectiva, porém quando pisavam no calo dela...

- Não, não chame.- Atalhou Sarah, num tom mordaz, quando Ruth já ia se afastando. Ela deu meia volta devagar e eu sabia que ali começaria uma guerra, antes mesmo da que estava por vir.

- Perdão, o que disse?- cruzou os braços, estreitando os olhos escuros na direção de Sarah.

- O que você ouviu- retorquiu Sarah, cruzando também os dela em tom de desafio. Keren se encolheu entre as duas, mordiscando as unhas em apreensão.

- E posso saber por quê?- inquiriu, Ruth.

- Você sabe muito bem que a senhora Abigail não gosta de receber visitas em seus aposentos. Sobretudo de homens. Sobretudo...- voltou o olhar para mim, entortando os lábios numa careta - trabalhadores rurais - "e eis a cópia vívida de Nabal", constatei em pensamento.

- Com base em quê? Em sua mente doentia?- sorriu sarcástica - Porque eu nunca ouvi isso da senhora Abigail. Que eu saiba, ele - descolou um dedo do braço e o apontou para mim - é mensageiro pessoal dela..

- Isso não muda nada. Ela não o chamou. A senhora Abigail é muito reservada, ela não diz as coisas, mas eu a conheço muito bem. Muito antes de você- deu de ombros. O desprezo destilando de seus lábios juntamente com veneno.

- E por isso se acha superior aqui, não?!- Atalhou Ruth, mordaz.

- Eu cheguei bem antes- descruzou um braço, olhando para as unhas bem limpas- isso faz de mim superior...- fitou Ruth de cima abaixo, voltando a fitá-la em seguida - a você - Ruth soltou uma lufada de Ar cheia de incredulidade e daí por diante eu não ouvi mais nada. O escarcéu estava feito e eu não havia conseguido progresso algum. Apoiei uma mão no batente da porta levando a outra aos olhos em seguida, esfregando-os com o polegar e o médio. "Só pode ser brincadeira" pensei. "Estamos a beira de uma tragédia e eu aqui, no meio de uma briga de cabelos e unhas". Seria fácil empurrá-las agora e adentrar os aposentos de Abigail, sem pedir licença. Mas a chance disso se tornar uma tragédia ainda maior era grande. Eu não poderia entrar no quarto de uma mulher assim, sobretudo da senhora daquela casa. Principalmente uma mulher casada com, nada menos que Nabal.

Era muito provável que tivéssemos quatrocentos homens vindo ao nosso encalço e eu não conseguia falar com Nabal. Ninguém conseguia falar com ele. Ele estava inacessível, inflexível e implacável. Por isso tentaria uma alternativa mais fácil, mais branda e infinitamente mais inteligente: Abigail. Mas eu não contava que encontraria algo ainda pior do que Nabal: Duas mulheres arrancando os cabelos na minha frente. Bufei, presenciando a cena mais ridícula da minha vida. As duas se engalfinhando como gatas selvagens, enquanto Keren se esgueirava dali, com os olhos arregalados.

Meneei a cabeça de um lado para o outro, mantendo a mão apoiada no batente da porta."Esse é o meu fim então?" Pensei, decidido a dar meia volta e aceitar o meu destino. "Se vou morrer, que pelo menos eu morra como um cavalheiro. Vou cingir a minha espada e lutar até a morte." concluí, enquanto fazia os meus passos para longe daquela algazarra. Até que antes mesmo de mover um pé à escada, ouvi uma voz familiar. Era ela, a terceira órfã. A minha salvaguarda.

Mas essa história, começa um pouco antes...

Uma Jornada Pela Fé (Pausado)Onde histórias criam vida. Descubra agora