Anjos

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Henry coçou a nuca, vestiu sua fantasia de padre e saiu de casa. Caminhando pela trilha de pedrinhas, de vezes em vezes esmagando um besouro.

A lua estava linda. Redonda e cintilante. Assim como as doces bochechas de Betty.

Henry caminhou por alguns minutos, sob a luz da lua. Até finalmente ver os arbustos que se enroscavam na cerca enferrujada. Ele empurrou o portãozinho que relinchou.

Cemitério era uma palavra forte. Era no máximo um pedaço de terreno baldio com algumas lápides cravadas no chão.

As botas de Henry afundaram no chão, e marchou para dentro do dormitório dos mortos.

Ali estava um anjo. Ou melhor, dois.

Um era totalmente pálido, todas suas vestes e características. Apenas branco. Oque dava um ar divino, mas tedioso. Asas longas que projetavam sombras nas lápides, a pele translúcida iluminada pela lua. Mesmo tão belo, lhe faltava algo. Uma cabeça.

Abaixo da estátua, o outro anjo. Coberto pelas sombras. Os cachos caindo pelos olhos.

"Por que não esperou lá dentro? Está frio."

"Ah! Padre... perdão, não te vi." Félix deu um sorriso desajeitado.

"Responda minha pergunta."

Félix engoliu um seco.

"Eu.. hmm ...Só estava pegando um ar."

Henry sorriu. Mesmo não acreditando em uma palavra do garoto. Se aproximou, e se sentou ao seu lado. Seu olhar vai até a lápide que estava à frente deles. 

Seu sangue congela.

Beatriz Winston. Dizia a pedra quase oculta pela grama alta.

Henry permanece imóvel, como um cervo quando vê as luzes de um carro.

"Sinto saudades de Betty..." Félix balbuciou.

Henry juntou todo o oxigênio que conseguiu armazenar em seus pulmões, os olhos arregalados, os nervos tensos e o coração saindo pela garganta.

"Ela está em um lugar melhor." Sua voz é calma, mas falha no final. Merda.

Henry tentou esconder a falha na voz, e passou um braço em volta do ombro de Félix.

"Como foi seu dia?" Henry sorriu falsamente.

"Eu vou pegar esse desgraçado desse assassino."

Henry sentiu o coração despencar da caixa torácica e afundar no estômago.

"Não diga isso... talvez, ele tivesse algum motivo."

"Quem mataria minha irmã? Ela só tinha sete anos!" Félix indagou.

Henry esfregou suas costas suavemente.

Motivo? Aquela pirralha viu quando Henry matou o antigo padre. Ele se lembrava de suas marias chiquinhas, do uniforme escolar impecável, uma mochila rosa nas costas. Lembra da sua expressão de choque quando o viu batendo as costas do padre contra uma lápide. Ela paralisou, ficou com tanto medo que suas pernas rechonchudas tremeram. Mas antes que pudesse gritar ou correr, Henry a agarrou pelos cabelos, e quando tentou fugir, acertou a nuca da garota com a cabeça do anjo. Foi tudo tão rápido. Seu corpo tombando no chão com um baque surdo, detritos da estátua espalhados pelo chão. Ele a juntou como cacos de vidro, a colocou em seu colo. Esfregando suas costas, assim como estava fazendo com seu irmão. Beijou seu crânio exposto, a carne dilacerada mal cobrindo o buraco que deixará em sua cabeça.

Betty não estava em seus planos. Mas ele não podia deixar provas. Arrancou seus braços e pernas com uma serra enferrujada que achou nos fundos do cemitério. Pegou uma corda grossa, a envolveu em volta do pescoço da garotinha. E a prendeu no teto da igreja.

Entrou com uma expressão triste no velório, observando o corpo oculto por um tecido branco.

Mentiu. Falou que o antigo padre tinha saído de férias um dia antes. E nunca mais voltou. Talvez porque estivesse enterrado a quatro metros abaixo do solo.

Logo de cara, os proprietários da igreja gostaram de Henry. Claro. Era jovem e bonito, sorriso cativante, olhos profundos, e bom de lábia.

Não foi difícil encantar Félix com suas palavras nobres, passar as mãos em seus cabelos, lamentando por sua irmã.

Desde que o viu, teve uma sensação estranha no estômago. Talvez fosse amor, ou dor de barriga. Não sabia o que era. Mas nunca sentiu antes. O sentimento o cativou, era vicioso como uma droga. Desde que pregou os olhos naquele corpo, ou que sentiu aquele cheiro que o deixava louco.

Algo naquele garoto revirou seus órgãos, e os reorganizou de maneira porca. Sua respiração falhou. Ver as lágrimas jorrarem de seus olhos verdes. Fez ele sentir algo que nunca sentiu. Se satisfazer com sua dor. Com os gemidos de angústia que se transformavam em gritos de dor. Música para seus ouvidos.

"Você tem irmãos?" Félix perguntou encarando a lápide, limpando as lágrimas com as costas das mãos.

Henry parou de revirar o passado. E olhou o moreno.

"Ah... eu..." Henry pausou.

Lembrou de Andrew, o irmão mais velho. Que havia a pouco tempo desaparecido de um hospital psiquiátrico.

A saudade era tanta que esmagava seu coração.

E de Oliver, o irmão mais novo que tanto odiou.

"Não. Sou filho único. Infelizmente." Henry sorriu.

"Sério?... E como eram seus pais?" Félix se inclinou para ele.

Seu sorriso se alargou em um nível que fez suas bochechas doer.

Sua mãe? Não tinha muito o que dizer, era doce. Sempre os dava agrados e abraços. Contava-lhe histórias antes de dormir. E até mesmo os protegia dos golpes do pai.

Mas o pai não gostava. Ou melhor, odiava. Teve um colapso quando descobriu que a mulher estava grávida de novo. Chegava bêbado, alucinado, tirava o cinto das calças e chicoteava a mãe até desmaiar. Os irmãos assistiam entre a fresta da porta.

Cresceram acreditando que isso era dar amor. Dar carinho. Amar alguém de verdade. Ao ponto de prendê-la a você para sempre.

"Falecerem em um acidente de carro." Henry mentiu.

"Ah.. meus pêsames, Padre..."

Henry não respondeu.

"Está frio. Vou te levar pra casa."

Henry disse se levantando e empurrando o portãozinho enferrujado.

A Igreja Dos RatosOnde histórias criam vida. Descubra agora