Mesmo com as pálpebras fechadas, viu a claridade dos feixes de luz. Esfregou os olhos com as costas da mão. Tentou voltar ao sonho, mas agora seu corpo estava demasiado energético para se aquietar.
Suspirou baixo, inalando o ar a seu redor. O cheiro do passado, não do passado traumático, mas aquele dos dias de verão. Se afofou na cama macia, puxou os lençóis para si. Se pudesse ficar assim por pelo menos mais alguns minutos, seria uma benção a seus membros doloridos.
Mas... Antes estava no chão, como aparecera em uma cama?
Abriu os olhos, se sentou, olhando ao redor. Não estava mais no chão, na verdade, estava em um lugar completamente diferente. Paredes e chão de madeira, pequenos moveis lubrificados por verniz. Decoração em porcelana, em formato de pequenos bules de chá e xicaras pequeninas. Umas bonecas de pano nas prateleiras mais altas.
Afastou as cobertas, notou que usava roupas limpas, um pijama leve. Esticou as pernas, estremecendo com a sensação do chão frio. Se levantou, indo nas pontas dos pés, mesmo sem motivo aparente. Dá cozinha, vinha um cheiro gostoso. Café e cuca, podia dizer pelo aroma.
Caminhou pelo corredor, as tabuas rangiam abaixo de si.
"João ninguém, que não é velho nem morto. Que come bastante no almoço para se esquecer do jantar.."
Reconheceu a musica, mas não a pessoa que a cantara. Foi até uma porta entreaberta, que a afastou lentamente. Vislumbrou um homem, preparando uma xicara de café. Tinha um sorriso por baixo do bigodinho italiano, alguns fios castanho-escuros caindo sobre a testa. Deu um passo, a tabua relinchou.
"Parece que acordou." O homem disse erguendo a cabeça, um pouco surpreso.
"Quem é você?" Henry perguntou apressado, e desconfiado.
"Vincenzo. E o Senhor..?" Perguntou calmamente, quase como se estivessem se conhecendo em um ponto de ônibus.
"Henry.. Quer dizer, Hendrik. E que droga estou fazendo aqui?" Indagou levemente irritado.
"Bom, não pude deixar um homem doente como você morrer em uma casa velha." Disse coando o café.
"Doente?-" Foi cortado pela própria tosse, que expeliu certa quantia de sangue. Olhou para a mão, vendo o liquido. Os olhos se arregalaram.
"Sorte sua que está apenas no estagio inicial. E que sou curioso o suficiente para me deixar levar e entrar em moradias velhas."
Não sabia oque perguntar primeiro, se realmente contraíra alguma doença, ou por que do habito estranho de invadir casas.
"Tuberculose." Disse com um sorrisinho, tomando um gole de café como se estivesse apenas lhe informando sobre as situações climáticas.
"Oque?!" Perguntou incapaz de esconder a descrença.
"Oh, não seja tão emotivo. Estamos em 1978, já temos a cura."
Soltou um silvo sem perceber, recompôs a postura eufórica. Esfregando a bochecha, um pouco envergonhado, um pouco constrangido.
"Entendo...E, v-você tem ela, certo?" Questionou impaciente.
"Tenho. Mas peço que por enquanto descanse, seu corpo está fraco."
Suspirou, vendo a mesa arrumada, com guloseimas e bolos.
"Vamos, se sente. Eu não iria preparar tudo isto apenas para mim." Riu de leve.
Se sentou em uma banqueta rapidamente, enfiando um bolacha na boca.
"Parece que estava com muita fome mesmo."
"Nem me diga, tive que comer uma ovelha." Confessou mastigando e enfiando outra bolacha na boca.
"Eu bem que notei um cheiro estranho naquele sangue." Riu.
Mastigou, pensando em suas pendências. Quanto tempo será que perdeu?
"Ei.. Estamos longe da cidade?"
"Não muito, são só algumas horas de carro."
Refletiu sobre, a mão pousando em uma caneca e logo a erguendo até a altura dos lábios. Mesmo na casa de um completo desconhecido, ao qual apenas tinha conhecimento do nome, se sentia estranhamente normal. Como se tivesse vivido ali anos e anos de sua vida.
Observou os lados, alguns armários estavam repletos daquelas bonecas medonhas. Bonecas de pano, com seus membros de fácil manejo, mas com suas faces duras de porcelana. Os detalhes da maquiagem retocados em tinta negra, com pontas afiadas e delicadas. Se apegou a olhar uma. Vestida de camponesa, segurava um jarro de sabe se oque, que era a única boneca negra. A coitada apresentava um rosto lamentável, como se cabisbaixa.
"Por que tantas?" Perguntou sem desviar o olhar.
"São de minha vó. Tenho medo de descartá-las, e o espírito de minha velha vir atazanar-me." Disse descontraído, batucando os dedos na mesa.
Observou a bonequinha tristonha. Perguntava-se do por que. Do motivo de sua infelicidade perante a alegria das outras.
"São medonhas." Suspirou, tirando o olhar da bonequinha e vendo seu café.
"A realidade que é."
"Errado não estás."
Riu baixinho.
"Quer levar alguma?"
Levantou os olhos miúdos.
"Para sua felicidade, sim."
A conversa fluía como as provas de um pecado em um pano banhado em água limpa, como as músicas de qualidade suspeita em uma vitrola.
Se quer precisou pensar muito. Se levantou, e segurou com cuidado a bonequinha. Tocou a bochecha fria. Por quê tão triste?
"Está era sua favorita."
"Boa escolha."
"Chamava-a de Porcelline."
Tocou a lágrima pintada a tinta cintilante no canto do olho. Porcelline, a bonequinha tristonha.
"Sua avó ainda está viva?" Perguntou sem ligar.
Lembrou do pai, que desde sempre acreditava que era os tapas e cintadas que iriam educar os filhos. Esta crença enraizada desde os dias de escravidão. Mas que novamente, o humano egoísta não gastou tempo em perceber o peso de seus atos.
"Morreu de idade, encolhida em uma cama. Tossia e resmungava por não ter aproveitado tanto."
"Meus pêsames."
"Não diga isto. Morreu em paz, ou melhor, em volta da família que tanto amou."
Passou o dedo pelo bordado do vestidinho amarelo florido.
Será? Ou será que odiou a família até os últimos dias?
"Pode me levar até a cidade?"
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A Igreja Dos Ratos
HorrorCrianças são seres enigmáticos. Com suas mentes incompreensíveis, sempre com suas perguntas sem nexo. Mas, é possível que uma criança saiba que ela é um monstro? Que saiba da descrença humana e de seus feitos que mancham a terra com o sangue inocent...