A bebida fria deixou um rastro de calor em sua garganta, tossiu fortemente. Largou a garrafa enquanto tentava cuspir o líquido. Os olhos lacrimejando, coçava seu pescoço, em busca da libertação de tal gosto. Tal amargura dançava na ponta de sua língua.
"Não, não, não... Abra a boca. Engula." Xingou o pai, abrindo a própria boca do filho enquanto o forçava a dar mais um gole.
Olhou o pai, estremeceu. Separou os lábios trêmulos, o pai rapidamente derramou um pouco da vodca na garganta dolorida do filho.
"Isto é para seu bem, garoto." Disse o pai saindo do celeiro.
Olhou a garrafa. E a jogou no chão, os cacos se partiram.
Seguiu o pai, tentando acompanhar seu passos.
Olhou para os lados, vendo o trigo que chacoalhava com o vento, e os pássaros que passavam por suas cabeças. A brisa suave que acariciava sua bochechas rosadas, que brincava com suas mechas negras. Soltou um riso, fazia cócegas. Olhou o céu azul, e as nuvens que assumiam formas enigmáticas que despertavam a imaginação. Eram tantos sons e cheiros. Tanto oque ver.
Puxou a manga do pai, apontou o dedo para a estrada, sorrindo alegremente.
"Não. Hoje não terá passeio. Você já está bem grandinho." Disse o pai com as mãos nos bolsos das calças esfarrapadas.
Resmungou, as sobrancelhas franzida e fez beicinho. Se ao menos o pai entendesse que o filho desejava passar mais tempo com ele.
O pai se quer o olhou, apressou os passos e foi até a oficina. Deixando o garoto sozinho.
Bufou, pisoteou o chão com seus pés descalços, e subiu os degraus de madeira.
Empurrou a porta velha, sentiu um cheiro forte entrar por suas narinas. Um aroma doce. Correu para a cozinha, onde a mãe e Andrew o esperavam com uma torta quentinha.
"Ei, Henrik. Venha." O irmão o chamou com um sorriso.
Subiu em uma cadeira, espiou a torta fumegante. Suas mãos tremeram, os olhos esbugalhados, ainda na tentativa de alcançar o prato.
"Cuidado, querido." A mãe riu de leve, afastou as mãos desesperadas do filho.
"Tenha calma, mamãe ira nos servir." O irmão apoiou a mão em seu ombro.
Choramingou, baixou a cabeça.
Mas logo foi recompensado com um pedaço da torta. Pegou o prato e entre saltos se sentou a mesa. Pegou o garfo e espetou a torta inteira, lambendo o recheio.
Alegrou-se, abriu um sorriso enquanto o irmão ria.
"Olhe, mãe! Henry tem um bigode!" O irmão disse entre risadas e pedaços da torta.
"Meninos, mastiguem primeiro!" A mãe os lembrou, mesmo cedendo e rindo também.
Este gosto era bem melhor. Lhe fornecia um calor na barriga, uma sensação de conforto. Na satisfação ao comer a comida que apenas a mãe sabia preparar.
Em um rádio perto da janela, "A Dama de Vermelho" de Francisco Alves, tocava em volume baixo. A melodia se misturando com as risadas que alegraram seus dias melancólicos.
Por um momento. Em sua vida, sentiu o amor verdadeiro. A verdade felicidade, que diferente do que os adultos diziam; não se tratava de dinheiro e muitos menos prêmios.
Uma coisa tão preciosa como a alegria se encontrava nas pequenas ações fúteis. Nas risadas soltas e nas ações bobas, mas com o intuito de esquecer da descrença humana.
Recuperaram o fôlego. Henry balançou as pernas magras, mastigando a torta. Aproveitando a sensação.
O silêncio se instalou na sala. E assim, esqueceram do frio, da solidão e do vazio.
Mas como tudo que é bom, tem que uma hora acabar.
Deixa meu coração descansar... O homem do rádio cantarolava baixinho.
A porta se abriu abruptamente, o pai surgiu com um expressão furiosa.
"Vlad?" A mulher o chamou assustada.
O pai correu até Henry, segurou-lhe os ombros, o elevando no ar enquanto o chacoalhava. Sentia a saliva sendo inseridas as palavras raivosas.
"Oque este retardado tem?!?" Rugiu o pai, quase esmagando o garoto.
Olhou em seus olhos. Os olhos amaldiçoados pelo diabo, o brilho tão escaldante e chamativo quanto as chamas do inferno.
A mãe foi até o marido, fez ele largar Henry que tremia descontroladamente.
"Olha só, está fazendo de novo! Vê Abigail?! Olhe como ele treme!"
Seus nervos se contorciam, os olhos arregalados enquanto a criança grunhia. Puxava os próprios cabelos, fardo das palavras do pai. As pernas batucavam no chão de madeira, e o coração que tamborilava em sua caixa torácica.
"Shhh...Henri, tudo bem." O irmão abraçou o garoto. Acariciando seus cabelos.
"Ele desperdiçou minha vodca! Sabe quanto custa uma garrafa daquelas?!" O pai gritou, a mãe tentava o acalmar.
O irmão suspirou, tampou os ouvidos de Henry com suas mãos. Apoiou a cabeça do garoto em seu peito.
Assim, ambos assistiram.
Assistiram a alegria se esvair assim como a esperança.
Ao pai que lançava golpes a mulher. Ao monstro que feria a esposa grávida.
Andrew apoiou o queixo no topo da cabeça do irmão, esfregando suas costas.
Henry se acalmava aos poucos, a respiração se tornando baixa.
"Não quero ver o mundo como ele realmente é." Andrew murmurou, os olhos entreabertos vendo o pai arrastar a mulher pelos cabelos.
Henry fungou, fechando seus olhinhos lentamente.
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A Igreja Dos Ratos
HorrorCrianças são seres enigmáticos. Com suas mentes incompreensíveis, sempre com suas perguntas sem nexo. Mas, é possível que uma criança saiba que ela é um monstro? Que saiba da descrença humana e de seus feitos que mancham a terra com o sangue inocent...