- Quero dois pães, por favor. - As tristes palavras recaem sobre o lustro balcão daquela, tão frequentada, padaria. Do mesmo modo, seus olhos despencam rumo ao chão e fixam-se em seus sapatos desajeitados, já desgastados pelo uso recorrente e demasiado. Tanto maltrapilho quanto possa se imaginar de um morador da Rua Cabral de Melo Neto, estava sob alguns pares de olhos, brilhantes da maneira que somente o ódio os podem deixar - afinal, que é o ódio senão o brilho do rancor?
Após pagar ao caixa com suas últimas moedas, sujas e empoeiradas, segue rumo ao lugar que costuma chamar de casa. Não há pressa para chegar. Afinal, mesmo a frieza de qualquer rua é melhor do que aquele casebre carcomido por cupins, protegido por uma nuvem de baratas que ali pousam sazonalmente. Nem tenta cumprimentar algum humano, eles o rejeitariam. Continua sob a presença de diversas pérolas negras, algumas mais intensas, outras envergonhadas e algumas nem eram reais.
Que seria de um pobre se fosse gente? A pergunta é mesmo estarrecedora. Ele se perguntava durante todo o caminho, já não sabendo distinguir as próprias ironias. Tomava como verdade os versos dos dentes de brilhante e como mentira os próprios olhos. Verdes, que ironia. Eram como lua, refletiam o dinheiro dos outros, mas ele mesmo não possuía.
Assim que chegou ao destino, colocou os duros pães sobre a mesa da cozinha, que, com certeza, era mais feliz que ele próprio. O relógio da parede acusava duas horas. Duas horas. Duras horas. O relógio acusava o tempo, enquanto a mesa acusava a sua pobreza. A mesa bamba mantinha longe daquele piso os pães, um prato e uma cópia de cada talher. Cada um com mais memórias que o próprio dono.
Mas nem tudo há de ser miséria na vida de um miserável. Afinal, tinha um gato. Sim, um gato. Algo que provava que era vivo, apesar de não ter tanta certeza. Um raquítico gato, estava sem miar há dias pela falta de voz na garganta. Ainda assim, era alguma companhia, talvez temporária, mas havia. Nada no animal o diferenciava de seu dono, nem mesmo a falta de voz. O gato não falava por fraqueza e o outro por não poder falar. A voz arranhava sua garganta e a falta dela arranhava sua mente. Sua mente arranhava a prisão em que vivia. O gato arranhava as paredes. O dono arranhava as cordas de o que um dia já foi um violão.
Naquela casa, sala de estar era quarto e banheiro. Cozinha era sala de jantar. Lavanderia? Até havia uma máquina, resquício de quando foi gente, mas pouco funcionava. Roupas, as que tinha no corpo e mais algumas outras perdidas. Entretenimento? Gato, violão e livros. Sabia ler desde muito moço. Tinha sido muito bem educado, estudava com as gentes e julgava os ratos. Hoje, julga as gentes e vive com ratos. Se mantém com auxílio de outros ratos, que, por reflexos naturais, - até porque não são gentes para sentirem empatia - fortalecem-se como comunidade de abelhas. São simbióticos, vivendo de pura comunhão. Lembram cristãos perseguidos à época de Cristo.
Claro que, apesar de tudo, também tenta trabalhar. Serve as gentes em suas isoladas diversões. Alguns ousariam a chamá-lo de garçom. Servia taças e, de gorjeta, recebia escárnio. Servia prazeres e recebia deboches. Seu mísero salário dava para comprar alguma comida e pagar alguma conta, nada menos e nada mais. Era disso que dava conta com seus 850 reais.
Um rato sonhador, se é que rato sonha. Sonhava com a universidade desde criança. Agora que era rato, nada podia fazer para conquistá-la. Sonhava durante o dia e trabalhava à noite. Talvez fosse um urubu. Suas asas mancas voavam para não muito distante. O pretume das suas penas não restava dúvidas, era urubu e era rato. Talvez fosse qualquer bicho, menos seu gato. Seu gato, sim, sonhava. Todos os dias, o esquelético sonhava com alguma comida qualquer, novelos ou brinquedos. Sonhava com prazeres e não objetivos. Queria ser feliz, não bem sucedido.
Após comer seus pães, simplesmente dormiu. No restante da tarde, tentava folhear algum livro que ainda tinha. Continha mais pó que palavras. As informações enlaçavam-se naquela mente talvez tão empoeirada quanto os livros. Dessa maneira, leu um dos seus favoritos: Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema. E havia mesmo. Quem sabe o sangue não era dele?
Passadas as horas, voou com as penas restantes até o bar da placa caída onde trabalhava. Passando por postes mal iluminados, ratos que engasgavam com o nojo que tinham de si, lixos que levitavam e mais pares de pérolas negras, essas mais caridosas, não praguejavam, apenas observavam, sem emoção alguma. O dono o cumprimenta, por obrigação moral de sua consciência. Uma bandeja. Duas taças. Três bandejas. Sentia suas aspirações escorrerem pelo seu suor e pela bandeja. Aperol. Piña Colada. Drinks de felicidade em bocas amargas de desdém. Enquanto ele observa, numa leve pausa, um princípio de garoa que cai na rua. As nuvens lhe pareciam mais livres do que ele próprio, afinal, elas eram livres a chorar a hora que bem quisessem, enquanto ele estava preso entregando sonhos pela bandeja às cínicas gentes do bar e entregando seus sonhos de bandeja ao patrão.
Com as asas já encolhidas, o rato volta rastejando no meio de memórias desperdiçadas nas afiadas ruelas. As pérolas não mais o julgam, mas o admiram. Não pela força, a gravidade o puxava mais que o próprio desejo, mas sim pela vida. Poucos ali tinham um coração que batia. No mais, era um coração lutando com o cérebro por poder. Ou um coração comendo o tórax. Ou o rato comendo o próprio coração. Os postes iluminavam suas gotas de suor. Por sua vez, elas refletiam a dor de um sangue que não havia forças pra sair daquele corpo. Dor do trabalho. Dor da humilhação. Dor de viver daquele jeito. Será que sou vivo, será que sou um cenário? Era o que ele se perguntava, afinal, as luzes não pareciam apontar em sua direção. As luzes do poste não pareciam mais o iluminar, mas sim a BMW branca que surgia no meio da rua.
Já na Cabral de Melo Neto, é recepcionado com o ríspido cumprimento do vento da meia noite. Seu gato dorme inquieto, parece em um pesadelo. Talvez esteja sonhando com a realidade, ele pensou. Deitou-se no colchão mofado. Mil e um pensamentos entravam e saíam por suas orelhas. Incomodariam o mundo se fossem escutados. As gotas de sangue dos poemas escorriam do cérebro e os desejos de liberdade do coração. Pensava se ainda poderia voltar a ser gente. Pensava nos videogames da infância. De repente, sentiu-se em um jogo, no qual era o personagem principal, mas quem o controlava era a ampulheta. A liberdade incomoda, mas um rato livre enoja, foi a frase da vez. Suas campinas o traíram, dessa vez. Mostravam memórias. Para ele, memórias são diferente de lembranças. Memórias foram vidas que viveu. Lembranças foram vidas em que foi vivido. Não gostava das primeiras. O lembrava de que já teve vida. Porque se tivesse vivido, sentiria falta. Contudo, se nunca experimentou da liberdade, seria feliz sem lembrar. As lembranças eram saudosas mas momentâneas. Eram prazeres de um corpo. Videogames, comidas e festas. Lembranças são fugazes como os prazeres que representavam. Êfemeros como fina poeira. Memórias lembravam liberdade. Liberdade é o prazer de um homem, coisa que ele queria esquecer que era.
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O mundo é dos ratos
RomantizmO mundo está cheio de ratos. Nas ruas, nos lixos, nas escolas. Em todas as paisagens há um rato, inclusive seu espelho. Os ratos são diferente das gentes. Elas são. Eles não são nada. Poucos são os ratos que possuem memórias - coisas de gente. Mas o...