O anúncio

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Dizem que a vida começa aos quarenta.

Bem, até o último dia do meu trigésimo nono aniversario eu realmente acreditava que não. A vida só me era uma jornada cansativa com o único objetivo de descansar na terceira idade. Era o tempo correndo sem pausas e a monotonia seguindo os mesmos passos –Estes dois elementos compondo cada instante da minha existência. As tantas coisas que famigeradamente davam razão a ela, como poesias, filosofia e romances, nunca fizeram tanto sentido pra mim. Sendo um pouco positivo, talvez até já tivesse amado, visto o mundo com cores completamente diferentes e tudo mais... Mas isso já fazia muito tempo, e eu já havia me esquecido dos meus saudáveis vinte tantos anos.

O trabalho no escritório de contabilidade me ocupava até mesmo durante o sono. Planilhas, todas as operações matemáticas executadas na velocidade da luz; telefonemas de clientes, empresas telefônicas com suas promoções e guias de impostos me afogando no mar de impaciência me rendiam dores nas costas, de cabeça e joelhos. Não queria dizer, mas... Achava que a velhice estava estreando um pouco antes do previsto.

O meu cotidiano sempre foi assim, desde os meus vinte e dois anos. Honestamente, pensei que continuaria firme apesar das dores.

Até que um dia toda essa rotina parou.

E eu nunca me imaginei vivendo por alguém como vivo agora e irei lhe contar os detalhes.

***

Tudo começou com um anúncio no jornal.

Eu precisava que alguém me ajudasse com a casa durante meu horário de expediente. A minha antiga ajudante havia se casado há mais ou menos dois meses e a minha casa estava de cabeça para baixo. E entre dar conta de lavar roupa e cozinhar eu só tinha o domingo para dormir. Ou melhor dizendo, cochilar.

Levou um pouco mais de duas semanas para que alguém telefonasse.

Do outro lado da linha uma voz reconfortante me perguntava sobre o futuro serviço. Admito que aquele primeiro contato havia me deixado contente.

-Alô, senhor John Lennon?

-Ele mesmo...

-Sou Paul McCartney. Liguei por causa do seu anuncio no jornal; estou bastante interessado no trabalho.

-Ah, que bom! Finalmente uma ligação! –Suspirei aliviado. -Pois bem, qual a sua idade, Paul?

-Vinte e cinco anos, senhor.

-Tem experiência na área? Lava, passa, cozinha?

-Tecnicamente sim. Eu cuidava de tudo na casa da minha avó e...

-Tem habilidades com pintura, consertos em geral? –Interrompi ansioso. -Às vezes preciso de ajuda com uns reparos.

-Bem, eu acho que si-

-Contratado, meu jovem. –Ele havia me caído perfeitamente na vaga. –Você começa segunda-feira ao meio-dia. Turno de seis horas. Salário inicial de 1200 com benefícios. Extras para estas atividades secundárias.

-Er... Meu Deus... –Percebi sua atordoada felicidade. –Er, obrigado pela oportunidade, senhor Lennon, eu-

-Não se atrase, jovem. –Meu ser metódico quase não permitiu que o jovem McCartney falasse mais que duas palavras inteiras. –Qualquer dúvida torne a me ligar. Até breve!

-Sim, senhor. Até breve...

Apenas tempos depois eu iria me consertar nesse sentido.

O fim de semana havia passado, exceto a minha irritabilidade com a minha própria bagunça, que indo e voltando alterando moveis e tapetes não estava satisfeito com nada. Nem comentarei do estado da cozinha até então.

Em pouco mais de uma hora eu estaria de volta ao trabalho, que por esquecimento acabei não comentando que o escritório ficava a apenas dois quarteirões de distância de onde eu morava –Sim, sou um bastardo sortudo. Dessa forma, depois de comer do pouco que sabia cozinhar, esperei meu futuro ajudante chegar para que eu pudesse lhe repassar tudo.

E bem, ele foi incrivelmente pontual em seu primeiro dia.

Ouvi a porta bater exatamente as doze horas.

Ao abri-la para cumprimentá-lo, vendo-o pela primeiríssima vez, minha voz havia morrido. Imediatamente as palavras travaram na garganta e o restante dos meus sentidos aguçaram de maneira espetacular, num aviso de algo positivamente novo. Meus ouvidos assim trabalharam em cinco segundos o que não trabalharam a minha vida inteira.

-Boa tarde, senhor Lennon. –A voz reconfortante também era quente e firme, ainda melhor do que pelo telefone. Ele então escancarou seu sorriso brilhante e estendeu sua mão para mim.

-B-boa tarde, jovem. –Eu havia gaguejado. Pela primeira vez, durante toda minha existência, eu havia gaguejado. Meu olhar fixo nele me fez prontamente prestar atenção no meu estado. Tentei me reestruturar para não parecer um sociopata (mais do que eu aparentava ser.)

-Espero não ter chegado atrasado, senhor.

-Não, não. Você foi absurdamente pontual. –Sorri nervoso, como se tivesse cometido o pior deslize do mundo. –Por favor, entre. –Dei-lhe espaço para passar.

-Com sua licença...

Ao dar-lhe passagem, deixando-o cruzar rente a mim, pude sentir seu cheiro. Agradabilíssima nota de corpo: pêssego. Coincidentemente a minha fruta favorita.

Antes de chamá-lo reparei em suas roupas: um macacão jeans desbotado, uma camiseta larga e um par de tênis surrado. Nas costas uma mochila vermelha cheias de chaveiros metálicos coloridos e patches de bandas de rock. Seu cabelo um pouco penteado para frente exibia algumas finas mechas saírem do lugar.

-Por onde começo, senhor? –O jovem se virou para mim de repente, me pegando um pouco de surpresa. Eu pigarreei para pensar em um lugar diferente.

-Pela cozinha, vamos.

A partir da cozinha pude me ater ao que importava naquele momento: a desordem da minha casa. Deixei claro que precisaria manter tudo limpo e em organizado: desde as panelas até as coitadas das minhas plantas que estavam aos pés da porta do quintal. O almoço deveria ser pronto no dia anterior e congelado, afinal, poderiam haver dias mais cheios no trabalho.

Sobre o meu quarto havia apenas uma proibição: nada de mexer na gaveta de baixo do guarda-roupa.

Ele escutou tudo com bastante atenção, fez perguntas muito especificas sobre produtos que eu usava, se eu era alérgico a algum alimento ou substancia, se possíveis mudanças de móveis poderiam ser aceitas, e mais outras tantas. Respondi tudo claramente e ao final de tudo me despedi dele pegando minha maleta e deixando-o com as chaves de casa.

Parece loucura deixar as chaves de casa com um estranho, não é? Ora senhoras e senhores, tudo ali era substituível –exceto minhas plantas, mas quem roubaria plantas? –E as coisas de maior valor emocional para mim estavam em um banco, num cofre, a metros abaixo da superfície. Enfim, tudo também era uma prova de fogo...

De volta ao trabalho eu jurei estar são, concentrado e pronto para dar conta dos meus deveres, mas o rosto do rapaz constantemente invadia meus pensamentos. Concluí ser uma provável preocupação tendo alguém tão jovem fazendo um trabalho daquela forma tão exigente. Mas não era.

Eu notava bem os traços de sua face mesmo o tendo visto há um tempo considerável. Traços precisos e delicados me causaram curiosidade; da linha da mandíbula com seu queixo saliente ao seu nariz perfeito em linha reta, passei bem pelas suas pálpebras caídas, adornadas com longos cílios e que definiam seu olhar profundo de íris castanho-esverdeadas; a boca pequena que detinha contornos finos, era graciosa... Ele realmente tinha um absurdo aspecto andrógino que hipnotizava e tirava de órbita qualquer observador.

No meio daquela tarde de desnecessárias distrações, entreguei parte do meu trabalho à minha assistente para que pudesse fazer a checagem precisa. Ela sempre revisava tudo antes de despachar qualquer folha de cima de sua mesa. Ela nunca errava. Eu nunca errava.

Mas aquele definitivamente não era um dia para acertos.

76 Trilhões de milhas - MclennonOnde histórias criam vida. Descubra agora