Yuná, ainda amargando a briga que tivera há alguns dias, resolveu caminhar sozinha pela orla da praia tentando andar pela espessa areia descalça. Não duraram dois minutos e se calçou de novo:
— Como ele consegue caminhar sem sentir dor nos pés? – Ela se perguntou reflexiva. Sem perceber acabou comparando aquele lugar com o modo de pensar de Yuhan.
"Yuhan tinha uma alma dura, que não se apega a nada. Ele era como aquela areia. Grossa, infértil, desagradável, sem nunca ter recebido afeto de águas cristalinas, águas reconfortantes. Há cinco mil anos ele era açoitado por ondas de um mar escuro e sem vida."
Ela começou a se sentir mal após uma semana alimentando sua raiva contra Yuhan. Esse tempo todo ela só pensou em ir embora porque queria realizar sua própria vontade de nascer. Era justo não era? Foi para isso que ela recebeu o fôlego de vida afinal de contas, mas agora, com a cabeça mais fria, não conseguia deixar de pensar que talvez (só talvez) a vocação para o nascimento não era para todos, que uns existem para nascer e outros apenas para compor a existência, como Mihai entre tantos outros que apenas vivem no mundo espiritual e executam suas funções em um universo não visto por olhos orgânicos.
Se deparou com o mesmo lugar em que havia se sentado no seu primeiro passeio com Yuhan onde contemplou o mar, então resolveu ficar ali novamente. Algumas almas caminhavam pela extensão de areia naquela hora e ela ficou apenas observando.
Viu uma alma pequena, parecia uma menina, mas sua forma tremulava sem muita definição. Estava parada olhando para o mar há poucos metros de distância. Ela não encostava nas águas, mas estava perto demais do limite imposto aos habitantes dali.
— Por quê? — Ela se perguntava. — Por quê? Eu não fiz nada de errado. POR QUEEÊ?
Yuná observou que o mar parou de se agitar por um momento. Ficou calmo e estável. Suas águas mansas pareciam um espelho refletindo as cores do firmamento acima de suas cabeças. Então olhou novamente para a alma que se sentou na areia com frustração e começou a chorar com profundo ressentimento.
Sentiu uma enorme vontade de ajudar, mas ficou hesitante por medo de acontecer o mesmo incidente que ocorreu dias antes. Faltava um tempo para Mihai recarregá-la, porém, não conseguindo segurar muito a curiosidade, acabou se aproximando da jovem alma.
— Olá... Érr... — Ela começou um pouco sem graça. — Sei que não está tudo bem, então... Posso te consolar? — Ela perguntou seguindo suas intuições, tentando não repetir o mesmo erro de encostar na alma penada.
— Como pode uma alma, como eu, ser consolada quando sua própria mãe lhe tirou a vida?
Yuná ficou em choque tentando processar aquela informação. Mesmo tendo a experiência de conhecer almas criminosas, realmente não era de se conformar que os humanos pudessem ir tão longe em sua violência.
— Não sei o motivo, mas eu sei que você existia muito antes de ganhar aquele corpo e aquela... Mãe. Foi de fato um azar... Mas sua existência não tem nada a ver com aquela pessoa.
— E o que isso significa afinal? Eu queria viver! Queria conhecer a vida como ela é? Por que me foi negada? Não posso nascer de novo!
A alma, que agora tremulava sua forma se assemelhando com uma jovem adulta, mudou sua aura cinza escura para um vermelho sangue. Ela sabia que esse era o sintoma de uma alma agressiva.
Yuná sentiu enorme compaixão por aquela alma. Ela era uma menina em um instante e depois uma jovem ao mesmo tempo. Pelo que ela estava começando a entender, ela havia morrido como uma criança e agora precisava sentir algo naquele momento que ela não sentira em vida para poder se acalmar: Afeto.
Se deixando levar pela compaixão tocou no rosto daquela jovem alma sem se importar que perderia da sua própria energia de novo. A moça não tentou se esquivar dela permitindo o toque afetuoso. Ao perceber a permissão da jovem, Yuná a abraçou liberando sentimentos acolhedores da mesma forma que Mihai fazia com ela quando está mal.
Como da última vez, ela viu o que aconteceu com aquela garota:
"Nascida de uma gravidez indesejada por uma jovem mulher. Cresceu até seus sete anos de idade sem amor, sem afeto, sem referência de família. Maltratada não só pela mãe como também pelo pai que não convivia com elas. Seu sofrimento foi sempre constante até chegar ao dia que, em um surto de raiva, sua mãe a obrigou tomar vários comprimidos os quais fizeram seu coração parar devido ao excesso absorvido. O corpinho foi jogado ao mar dentro de uma mala e sua última memória foi a visão de uma ceifadora com semblante bondoso usando um sobretudo preto estendendo a mão para conduzir aquela alma ao Reino dos Mortos."
Yuná sentiu sua energia ser sugada, mas não de maneira agressiva. A compaixão que tinha foi tão sincera que, sem resistência, permitiu a transferência de sua energia suavemente para consolar e acalmar aquela alma.
Se lembrando da sua experiência com o cavalo espiritual, Yuná lhe transmitiu alegria, sensação de liberdade e uma visão do que viu e sentiu no parque Além das Flores. Quis mostrar que ali não era mais um lugar de desespero, de solidão ou falta de afeto e sim um lugar de descanso.
Aquela garota provou mais uma vez o ponto de vista de Yuhan. Ela ainda não desistiria do nascimento, mas ela compreendeu que de fato nem todos os que nascem alcançam a felicidade. Muitos recebem o desprazer da vida como aquela moça.
Aos poucos a cor da aura da garota voltou ao cinza, só que um pouco mais clara. Ela então abriu seus olhos e contemplou aquela moça de cabelos brancos e olhos azuis que a ajudava a libertar seu interior das "águas escuras".
— Como você fez isso? — Ela perguntou segurando a mão de Yuná.
— Eu apenas deixei minha energia te preencher. Foi só isso.
A jovem deu outro abraço forte em Yuná começando a chorar. Dessa vez não absorveu mais energia e suas lágrimas eram de alegria.
— Obrigada. Muito obrigada. Eu me senti amada pela primeira vez. – Ela finalizou se erguendo. – Eu não quero mais culpar aquela mulher. Ela era uma infeliz. Minha angústia é porque eu só queria viver, mas quem sabe a minha morte vá trazer consequências para ela em vida. Quem sabe eu terei justiça mesmo que seja em minha memória.
— Sim. — Concordou Yuná relembrando do que viu na ilha do isolamento. — Em todo caso quem perde é ela. Pelo pouco que aprendi aqui, as consequências também ocorrerão após a morte. Sua vida foi curta, mas você foi a "lição" daquela mãe e ela não passou. Já você, pode aproveitar a liberdade do descanso que pode encontrar aqui. Também aprendi neste reino que as almas de crianças inocentes que chegam aqui não serão julgadas como os adultos... Pensando bem, talvez você fosse viver uma vida insuportável no mundo mortal por causa daquela mulher. – Ela concluiu.
— É. Talvez, mas ainda assim... Enfim, eu realmente te agradeço pelo consolo. – Ela terminou se afastando educadamente parecendo uma alma muito mais leve do que antes. Yuná reparou que o medonho mar voltou a se agitar com as ondas espumosas e esbranquiçadas.
Feliz em ter ajudado aquela alma, sentiu uma nova sensação com seu feito, o sentimento de se orgulhar de si mesma, por outro lado, sua energia estava quase esgotada. Olhando para sua frente, ela observou a moça voltar a se parecer com uma menina de uns sete anos que ia embora sem dizer seu nome.
A fraqueza amoleceuseu corpo etéreo e acabou cedendo suas pernas de maneira involuntária. Sentiu atextura áspera da areia em seu rosto ao cair de uma vez.
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Além das Flores - CONCLUÍDO ( 44 de 46)
FantasyATENÇÃO: Esta obra é uma ficção baseada em VOZES DA MINHA CABEÇA, inspiradas por mitologias e crenças sem vínculo verídico religioso. Entretanto, contudo, porém, todavia(rsrs), é uma história com forte apego aos princípios cristãos. Não possui hot...