II - ECOS DO DESPERTAR

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           Meu vizinho, mais uma vez, me encarava sem que eu conseguisse descobrir o que ele estava pensando, mas eu sabia que não deveria ser nada gentil, nada como: que menina encantadora ou que sorte a minha de poder fazer caridade. Ficou parado, com as mãos no bolso do moletom cinza, então virou as costas pra mim, pensei que iria embora e me ignorar, mas, ao invés disso, disse:

— Vem comigo.

           Ignorei o fato de que o visor do meu celular demonstrava que meus pais me ligavam e comecei andar.

— Meu nome é Ária. – Informei.

— Ian. – Ele me contou. – Mas você já sabia.

           Pude ver que um sorriso de lado surgiu em seus lábios, mas não quis me explicar, não sabia como ele descobriu que mexi nos livros, no momento isso não importava para mim.

           Era fato para mim que eu não conhecia meu próprio bairro, eu nunca fui de andar por aí, sempre estava acompanhada por Celine, até para os lugares mais longe, e éramos viciadas em ir de uber, salvo os dias em que Marcus estava ali para nos levar onde quer que quiséssemos. Ian e eu dobramos diversas ruas, com direito a me fazer não lembrar quais nós tínhamos dobrado, em dado momento tentei perguntei onde ele me levaria e recebi a mão dele levantada como se dissesse ''por favor, cala a boca''. Por fim, após cansar de tentar descobrir, acabei me contentando em andar mais atrás e encarar a ausência da nuca de Ian, visto que seu cabelo a cobria, descendo até quase aos ombros, ondulado, se movendo a cada passo que ele dava, passos esses que eram tão tranquilos que comecei a gostar do silêncio que nos envolvia.

— É aqui. — Ele parou e cruzou os braços diante do peito. – O que você vê?

— Uma oportunidade para sair correndo.

           Ele arqueou a sobrancelha quando olhou para mim como se reprovasse o meu comportamento, então olhei para onde estava e eu não estava em lugar nenhum, havíamos andado até um local sem casas, apenas árvores ao redor, e o céu negro sem estrelas por conta da ilumação dos postes.

— Nada, eu não vejo nada. – Respondi me perguntando se dissera o que ele gostaria de ouvir.

— Quando tudo está um caos, a gente precisa disso, do nada. Você está precisando pensar, Ária, não no que pode ter acontecido, mas no que vai poder fazer agora. – Ele finalmente olhou para mim, agora com um leve ar de sorriso. – Acredite, a resolução dos seus problemas não vai ser morar na minha casa. Você definitivamente não vai voltar para lá hoje. Eu costumo vir aqui quando eu preciso pensar.

— Tem certeza? De que posso voltar pra minha própria casa?

— Me diz você, eles não são meus pais, eu não os conheço. Eles são tão horríveis assim? Irão apedrejá-la em praça pública?

          Ian ainda falava com os cantos da boca curvados, como se a minha situação o estivesse divertindo muito.

— Eu não sei como é ter um pai ou uma mãe que sejam realmente bons para mim – Começou a andar novamente, refazendo o caminho que já havíamos feito e eu o segui. –, não estou falando isso para você ficar com pena. Eu só digo que você tem que preservar o que tem, apesar dos apesares. Você tem coragem, não é qualquer um que pede para dormir na casa de um estranho, – Ele mostrou novamente o sorrisinho irônico – ou por acaso você é fraca, Ária?

           Parei de andar e o puxei pelo braço para que também parasse quando percebi que ele não faria o mesmo.

— Nós não nos conhecemos e eu agradeço muito pelo que fez por mim na noite, agradeço mesmo, mas por que sinto que você está zombando de mim?

           Ele não sabia o quanto estava doendo, não sabia o quanto eu queria me esconder e nunca mais ser vista por ninguém.

— O seu problema, seja lá qual for, Ária – Ian tirou minha mão de seu braço. –, tenho certeza de que é medíocre. Eu tenho certeza que pode ser resolvido, que você pode chorar nos braços da mamãe. Não estou zombando de você, estou constatando o óbvio e me divirto ao ver como não é óbvio para você. – Ele se inclinou para ficar da minha altura. – Tome uma atitude.

           Eu me afastei, respirando fundo, porque não sabia se estava irritada por ele estar certo ou por causa do tom de voz que fazia com que eu me sentisse a mais burra das criaturas. Então, eu fechei os olhos e tentei respirar calmamente, o vento era suave em meu rosto, conseguia escutar o farfalhar das folhas, consegui sentir a tranquilidade do local, Ian permanecia calado, o que ajudou a reorganizar os meus pensamentos.

           Quando meu celular tocou pela milésima vez eu o atendi, a voz chorosa da minha mãe chegou até os meus ouvidos e eu entendi exatamente o que Ian queria dizer. Os meus pais não me expulsariam de casa por causa da minha conduta, eu já tinha 20 anos, idade suficiente para assumir meus atos e enfrentar as consequências deles, e precisei de um cara aleatório para entender isso. Após atendê-la e ouvi-la implorando para que eu voltasse, foi que retornamos a andar.

— Notícia boa, eu vou para casa.

— Vamos, e antes que eu me esqueça, parabéns por despertar.


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Quando estamos desesperados não conseguimos perceber que a solução é mais fácil do que esperávamos

Quantidade de palavras: 908

DESPERTOS - A ESCOLHAOnde histórias criam vida. Descubra agora