Jardim das Brumas - Parte 1

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O som da chuva torrencial ecoava pelos campos vastos e nebulosos da floresta, misturando-se ao ruído estridente dos raios e ao piar ensurdecedor dos pássaros que ressoavam naquela sinfonia caótica, em um cenário mergulhado numa lúgubre aura. As janelas estavam embaçadas, os galhos das árvores batiam contra as paredes da casa, e o choro sôfrego das pobres almas se estendia pelos corredores com sua essência decrépita. Era ali, diante da solidão e do terror, habitando aquela mansão isolada pelo tempo e esquecida pela humanidade, que o jovem Daario havia nascido e se criado, convivendo com seus piores pesares enquanto assistia uma terrível praga consumir sua família e a pouca esperança. Por aqueles corredores, o rapaz vagou durante longos meses com os olhos cravados no relógio, contemplado as horas passarem e a infecção se expandir pelos corpos frágeis de seus parentes durante os momentos em que lhes fazia companhia. Quando os primeiros e nulos raios de sol cruzavam sua janela, a rotina odiosa e costumeira era diariamente seguida, sendo o garoto torturado e humilhado pelo próprio pai até que tudo estivesse como o mais velho desejava — ainda que isso preenchesse sua pele de inúmeros cortes e hematomas, e afoga-se a sua própria infância.

Daario havia perdido sua mãe há muitos anos, sendo privado de qualquer explicação ou lembrança em sua memória para que pudesse ilustrar sua imagem e assim sanar a solidão que sentia, imaginando que talvez este mero desejo pudesse melhorar o gosto amargo que se formava em sua boca e tingir sua realidade de outra cor além do vibrante vermelho. O rapaz nunca havia tido qualquer contato com outras pessoas se não seus próprios parentes, desconhecendo o mundo que se encontrava por detrás dos altos muros de sua casa, e junto com ele os prazeres os quais jamais havia degustado — mesmo que houvesse criado sua particular fantasia e se limitado a explorá-la no pequeno bosque de sua casa, escapando pelas janelas de seu quarto, cruzando os jardins arruinados pelo descaso e mergulhando na penumbra da noite.

Em suas caminhadas noturnas nos campos cobertos pela relva densa, Daario sentia a grama úmida raspar a sola de seus pés descalços e o vento do outono soprar em sua face como um beijo fúnebre, realçando seu rosto belo e danificado à medida que vagava dentre as árvores altas em busca de seu pequeno paraíso inalterado, tocado pela lua e habitado pelas estrelas. Diante daquele santuário natural por onde calcorreava em sua insônia, arrastando os pés feridos pelo solo úmido e os dedos esguios pela flora milenar, o garoto de cabelos ruivos e olhos cinzentos como a prata aos poucos debruçava seu corpo cansado sobre a grama suave e retirava as bandagens que cobriam seu dorso, mirando suas orbes nas entranhas do lago cristalino e então encarando seu reflexo estático e abatido. No âmago de seus pensamentos mais abstratos, os sentimentos se misturavam as palavras vazias e ideias lutuosas, fazendo-o refletir a respeito da verdade e encarar a visão de sua vida; uma prisão, repleta por regras que não compreendia e punições que nunca havia merecido — apesar de saber que não era amado ou querido, e que sua existência se definia apenas por sua utilidade, servindo aqueles que conhecia de cabeça baixa e sem jamais romper o silêncio. Eram pessoas que estavam ligadas ao seu sangue, desconhecidas em suas lembranças e apagadas de seus vastos propósitos, sabendo apenas que se tratava de seus respectivos parentes e que a cada semana que passasse alguém deixaria de respirar.

"Por que"? Perguntava-se ao encarar a lua e as estrelas em sua magnificência, iluminando seus olhos como um farol em meio ao nevoeiro da melancolia. Com seus enigmas noturnos, Daario era capaz de ouvir seu único amigo emergir das sombras com seus passos suaves pelas folhas secas que jaziam no chão, não compreendendo os motivos pelos quais o animal aparecia em seu refúgio a cada noite passada sob a luz das estrelas, sempre se colocando ao seu lado com um aspecto curioso e o permitindo tatear seus dedos magros pela extensão de seus pelos. Observando o pequeno gato de maneira atenciosa, as linhas tortas de sua consciência e o árduo sentimento de terror se enroscavam em seu coração ao contemplar o amanhecer soturno no horizonte. Suspirando em um tom doloroso, seu corpo se erguia rapidamente ao se apoiar nos troncos grossos do salgueiro que ali jazia, correndo em direção à janela de seu quarto ao refazer seus passos pelo bosque, e se pondo a escalar as vinhas sinuosas que envolviam a casa sem se importar com as novas feridas que se abriam em sua pele — afinal de contas, algumas de suas cicatrizes estavam além dos poderes do tempo, e seus segredos muito além da verdade.

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