Segunda-feira (I)

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De frente com a enorme porta da sala dos professores, estendo a mão de punho fechado.

     Respiro fundo, e bato 3 vezes rapidamente na madeira. O som é meio oco. Primeiro coloco a cabeça dentro do cômodo, espiando.

     Lá está ele, sentado sozinho na enorme mesa em formato esquisito de gema de ovo esparramada. Me disseram que estaria corrigindo todas as provas do semestre pra se livrar da gente o quanto antes.

     Ele tá tão concentrado que sequer escuta o rangido estridente da porta.

     — Professor Hermes? — Indago, sem jeito, forçando simpatia.

     O homem ergue a cabeça, de soslaio. Apenas vejo seu sorriso sádico de presas pontuadas.

     — Se não é o Marcos, filho da querida Capitu. — Hermes revela enfim seu rosto. Parece até mesmo contente. Seu bigode falho parece aquelas sujeiras nos lábios depois de tomar um Nescau.  — Sente-se, meu rei — disse, empertigado, empurrando uma cadeira em sua frente com a ponta do pé para que eu pudesse me acomodar. Um convite para a forca, indicado com seu queixo. Tinha mania de falar "meu rei" com os outros; era esquisito, me deixava nervoso, ameaçado.

     Sorrio de volta para ele — ou ao menos tento —, enfim entrando na sala.

     Me acomodo na cadeira, esparramando meu corpo. Tive que segurar um arroto do almoço de mais cedo pelo bem da minha nota.

     Hermes reencosta os cotovelos na mesa, apoiando a cabeça com as mãos entrelaçadas pelos dedos. Os dreads de seu cabelo recaiam sobre os papéis.

     — Mande as ordens.

     — Queria falar com você sobre minhas notas...

     Desvio rapidamente o olhar para estudar a sala. Tudo em seu devido lugar, imaculado e limpo. O sofá de couro preto ainda tava lá desde a última vez que entrei — por causa de uma briga boba com um moleque que perfurou meu braço com um garfo mês passado —, e a prateleira quase transbordando de livros com capas em tons pastéis também.

     — Termine.

     É difícil manter contato visual ou seriedade quando me sinto devorado — no mau sentido. Uma onça escondida no mato alto.

     — Não tenho nenhuma nota vermelha no final desse semestre, a não ser....

     — Em literatura — completa Hermes, estreitando os olhos para dar espaço ao seu sorriso malicioso. — Justo minha matéria.

     — É — digo, evitando contato visual enquanto minhas mãos disfarçadamente suam sobre a mesa, provavelmente deixando uma mancha de gordura para alguém limpar mais tarde.

     — E você quer que eu lhe passe um trabalho avaliativo para que a recupere, não é?

     — Sim — faço cara feia. Talvez surta efeito naquele homem, um pouco de imposição. — Os exames finais batendo na porta. Não vou ter tempo de fazer trabalho de literatura no próximo semestre, estudando pras provas. E não quero ter que abrir mão da minha viajem no final do ano pra vir pra sua recuperação. Acho que nem você.

     Hermes desfez o sorriso, entortando o nariz, franzindo o cenho e espremendo os lábios. Estava pensativo, girando a caneta entre os dedos.

     — Imaginei que viria até mim, pelo seu histórico. — Hermes se levanta, de repente, me assustando. O som da cadeira sendo arrastada no piso de cerâmica doía os meus ouvidos.

     Hermes caminha até a prateleira de livros. Tira dela um livro em destaque, desempoeirado como se já tivesse sido pego anteriormente. Em pé, escorado na estante, folheia as páginas até encontrar uma folha destacada.

     — Achei — comemora, falsamente. — Essa lista tem o nome de praticamente todos os poetas conterrâneos da cidade. Seu trabalho será discorrer por completo sobre a vida do... — Hermes passa o dedo pela folha, vasculhando. — ...do poeta "Sipper".

     — E o que eu tenho que encontrar, exatamente?

     — Biografia, conteúdo, forma, ideologia, e claro: suas poesias. Caso minta, tente ao menos ser verossímil. Também não basta a verdade: quero que me faça crer, comprovando-a. Sou bem crítico quanto a isso.

     — Certo... Por mim tudo bem — agradeço, carrancudo, me apoiando nos braços da cadeira pra levantar.

     — Inclusive, um jovem veio até aqui mais cedo pedindo para fazer o trabalho também. Quis ter certeza de que você viria para saber se conseguiria transformar vocês dois em uma dupla.

     Estanco ainda torto, no meio da ação de alçar o corpo.

     — O nome dele é Aluísio.

     Congelo no ar. Estou imóvel agora, sem respirar, sem batimentos. Morto por dentro.

     Não.

     Ele não.

     — Quero fazer dupla com outro — digo, ríspido, seco, inanimado, robotizado.

     Por que justo ele?

     Hermes guarda seu livro de poetas na prateleira novamente, e então senta-se em sua mesa, voltando a corrigir suas provas.

     — Vocês foram os únicos com nota vermelha em literatura. Não há o que esperar, mais ninguém virá.

     — E por que não podemos descorrer sobre poetas diferentes? — Pergunto. Não consigo erguer o rosto, só encarar os meus pés. Minha voz aos poucos tava ficando trêmula.

     — "Discorrer" — corrige Hermes, ríspido, quase gritando e se recompondo. — A lista com poetas que uso para o trabalho avaliativo está no seu limite. Caso eu decida reutilizar poetas já discorridos por outros alunos anteriormente, nada os impede de roubar o conteúdo já pesquisado por eles. Por isso das duplas, para otimizar o pouco que resta até o final do ano sem ter que recorrer ao que já foi usado em outros semestres.

     Não entendi nada do que ele falou. Nem me esforcei pra compreender, sendo bem sincero.

     — Mas...

     — Não questione, Marcos. — Foi a vez de Hermes erguer o tom de voz. — Você não está em uma posição para questionar nada. Já estou lhe fazendo um enorme favor e você ainda quer mais? Me poupe. — O homem volta com tanta naturalidade a corrigir suas provas. — Agora, saia. Mandarei mensagem para Aluísio atualizando sobre tudo. Vocês têm até às 12 horas da sexta-feira dessa semana para me entregar o conteúdo digitalizado. — Hermes olha para o relógio de parede sobre a porta de entrada da sala. — 96 horas até lá, para ser mais exato.

     — Professor Hermes...

     — Eu disse boa sorte.

     Não, ele não disse.

     Agora é oficial: não consigo falar sem doer a garganta. Não é gripe, é ansiedade.

     Em silêncio, com os dedos roçando a minha calça, apenas concordo com a cabeça, balbuciando, saindo da sala em completa angústia.

     Por que justo ele? Por que justo Aluísio?

96 HorasOnde histórias criam vida. Descubra agora