Caio falava, mas eu não ouvia, na verdade eu não me importava com o que aquele homem tinha a dizer. Eu estava em uma fase muito monossilábica, eu queria apenas ouvir os ventos, a chuva lá fora e a música do quarto, sem conversar, sem lamentos, argumentos ou explicações. A vida estava me fazendo assim: ser meio quieta e estranha, meio vivida e meio partida.
A questão é que já falei demais, reclamei demais, implorei... demais. Contei meus segredos, entreguei meu corpo e tudo o que não pode ser tocado; chorei até dormir esperando algo bom pela manhã, fui frequente e consistente. Eu dei tudo o que meu coração permitiu e no final restaram apenas os pequenos pedaços. Percebo que continuo sendo exatamente o que ouvi Chico gritar que eu era: elogios sensoriais de uma mente fragmentada e confusa. Eu ouvi o quanto eu era o portal para outra dimensão "porra, tu é uma pessoa muito foda." "Eu ficaria a eternidade dentro do teu abraço." "Não sei como era o esplêndido antes de te ter comigo."
"Que filho da puta!"
Eu não soube ir embora antes que Chico pudesse se cansar e decidir recomeçar... sem mim. Eu queria ter ido quando ameacei, ido de forma definitiva, mas eu fiquei. Eu fiquei para limpar as cinzas do cigarro derby vermelho e o batom dos copos, fiquei para vestir o sutiã preto que ele gostava de tirar com a boca, fiquei para trazer a castanha torrada do mercado, fiquei porque queria ficar. Na parede vi a sombra do diabo vvestindo o manto de mulher com os cabelos cascateando as costas nuas. Fiquei cheia das lembranças e das palavras entaladas que permanecem a me engasgar mesmo depois de um copo de água goela a baixo.
Eu não consegui parar mesmo quando deveria. Ali, eu estava parando: Em outras camas, outros abraços, no tempo, na mente, no trânsito, no banheiro, no corredor, nas portas, na rua, nua e desvairada... louca. Louquinha. "Você está ficando louca." Louca de ciúme, louca de amor, estou simplesmente... louca? "Cala a boca, Chico! Eu te amava, porra!" É tão simples assim? Levo as mãos a cabeça e bagunço os cabelos como louca ao lembrar tudo o que quero esqueçer.
Eu não lembro como começ... tudo o que lembro foi que me levantei.
Caio e eu bebemos vodka, cuspimos arco-íris de ideias, degustei do leite quente do leão, pedimos comida em um aplicativo, dançamos pelados na varanda, cheiramos o pó das estantes, incomodamos os vizinhos, vomitamos as propagandas da televisão, bebemos o puro malte, transamos com as mãos... Eu só sabia que já havia se passado mas de um dia e meio quando percebi que ainda estava na casa de um completo estranho. Caio estava de joelhos e preparava outra carreira; estava sem camisa e de calça moletom preto. Continuava falando sobre... "O que?" Franzi a testa quando finalmente prestei atenção.
— Amanhã preciso resolver umas coisas, mas você pode ficar aí me esperando.
"Esperar? A vida tá passando num piscar." Pisquei os olhos procurando meu celular que o encontrei embaixo da cama, havia muitas mensagens do Vitor. Caio ligou a televisão, já era quase meio dia e o jornal começava, a notícia seguinte me fez sorrir.
— Um incêndio foi denunciado pelos vizinhos e começou no apartamento 202 do prédio Acacius que fica localizado na zona leste do bairro Matagal, não foi encontrado ninguém em casa. A polícia está investigando como o foco começou, mas acreditam que foi na cozinha. — Dizia a repórter.
Caio nem se importou, mas eu? Eu sorri ainda mais ao ver as imagens da frente chamuscada do prédio. Nesse momento o celular vibrou, pensei que fosse Vitor falando sobre o incidente, ignorei, não queria falar com ele, não queria falar sobre nada. "Que se foda o Vitor." O celular voltou a vibrar, ignorei, mas na terceira vez olhei para o visor.
Vitor? Não.
Chico.