Eu havia voltado a me deitar no sofá, parecia que eu tinha engolido um balão de ar hélio e flutuado até o teto, não sentia nem minhas pernas. Quando o efeito passou me vi sozinha e a porta da frente estava aberta, no quarto ouvi a cama bater na parede e os gemidos abafados. Me vesti rápido e sai chutando algumas latas pelo caminho, olhei no relógio e já eram quase oito da manhã.
Quando cheguei no trabalho, já atrasada, Cícero, o dono, já estava de cara fechada e reclamando do meu atraso. Peguei o avental, vesti e fui buscar as caixas para arrumar as prateleiras. Eu me senti executando movimentos mecânicos, com o rosto endurecido e olhar sonolento e vago, desejando apenas voltar para casa no fim daquele miserável dia, voltar para minha cama e meu interno vazio. Aquele lugar tinha cheiro de perfume vencido; de repente ouvi gritos, Cícero reclamava e eu não prestava atenção, ele olhava diretamente para mim e eu só lia seus lábios me chamando de vagabunda. Franzi a testa e comecei a ouvir, minha cabeça latejava como se um martelo me fizesse carinho.
— Eu já fiz um favor para o Francisco em deixar vocês ficarem na minha casa, agora te dei um trabalho e o agradecimento é esse: todo dia um atraso diferente, por isso o Francisco te largou, uma mulher que não serve pra nada!
Na minha mão havia sacos de arroz, não pensei e joguei. O saco bateu na outra prateleira e estourou, Cícero arregalou os olhos castanhos, joguei outro saco no chão e depois mais outro, Edite, esposa de Cícero, se aproximou.
— Valha minha nossa senhora! — Ela arregalou os olhos. — Que está acontecendo aqui? — Ela percorreu o olhar pelo o arroz do chão.
— Vão se foder, todos vocês! — Gritei.
— Isabel, minha filha...
— Cale a boca! — Interrompi Edite gritando no mesmo tom que Chico me mandava calar e olhei para Cícero. — Chico me deixou porque era um merda, um covarde de merda!
Os velhos ficaram calados, Edite começou a chorar com as mãos agarradas próximo do peito, Cícero a abraçou e depois me olhou com ódio. Eu suspirei e larguei os sacos da mão na caixa do chão, tirei o avental e joguei de qualquer jeito por cima dos arroz espalhados que fiz questão de pisar. Eles que catem cada grão e engulam um por um.
— Não preciso do pulgueiro que nem o seu filho quis ficar. — Eu disse. — E eu tenho certeza que ele não vai voltar! — Dizer aquilo me aliviou. — Chico só ama a ele mesmo e às vezes nem isso!
Sai do mercado me sentindo tonta e cambaleei até o apartamento. Chutei umas caixas e pisei em poças d'gua. "se foder, você e essa vaca velha!" . Em cima da mesa estava a última garrafa de rum que Chico deixou pela metade. Virei e bebi boa parte, lá fora o sol castigava as roupas do varal, deitei no sofá e apaguei a mente, a memória.... nem tanto.