As coisas nem sempre podem fazer sentido pra você agora.)Eminem - Mockingbird
A noite estava fria, e o ar gelado parecia atravessar o moletom que eu vestia, apesar de estar dentro do carro. Eu estava estacionado do outro lado da rua, em frente à lanchonete onde Valência trabalhava. O carro era um presente da minha mãe, um último gesto de carinho antes de ela ser internada no hospital há quatro meses. Meus braços estavam dentro do bolso do moletom, tentando me esquentar enquanto a observava andando de um lado para o outro.
Meus olhos não desgrudavam de Valência, do outro lado da janela embaçada pela minha respiração pesada. Eu conseguia vê-la com aquele sorriso encantador, servindo os clientes com uma gentileza que parecia genuína. Cada movimento seu era como uma dança hipnótica, uma coreografia que eu havia memorizado ao longo dos anos.
Eu já tinha decorado muitas coisas sobre Valência:
1. O jeito que ela amarrava o cabelo quando estava concentrada em algo.
2. O modo como morde os lábios sem perceber.
3. As botas que ela ama usar, da cor azul.
4. A maneira como ela sorri quando encontra animais na rua.
5. A maneira que sua risada vai ficando fina quando ela acha algo muito engraçado.
6. O cheiro de laranja que vem dela.
7. Os vídeos de comida que ela gosta de ver desde que tinha 16 anos.
8. A maneira que ela sempre anda com a câmera fotográfica dela.
9. O jeito que ela faz meu coração acelerar dia após dia.Voltei a encará-la e sorri. Hoje, ela usava o cabelo preso, com uma mecha solta caindo sobre o rosto e a mesma caia quando ela se inclinava para pegar algo.
Eu queria ser aquele cabelo, aquele fio que tocava sua pele.
Queria ser muito mais do que um espectador na escuridão. Senti meu peito apertar e minhas mãos foram de encontro com o volante, apertando-o com força, os nós dos meus dedos esbranquiçados pela pressão. Olhei atentamente para o babaca que tocava em seu braço com tanta intimidade que me deixava doido.
O relógio do carro marcava 22h15. Ela estava quase terminando o turno. Eu sabia disso porque havia decorado seu horário de trabalho, cada entrada e saída. E eu estava sempre ali, a observando.
Eu sabia os horários de Valência até mais do que ela mesma.
Ela riu de algo que o babaca disse, e por um momento senti como se aquela risada tivesse atravessado as paredes de vidro da lanchonete e ecoado dentro de mim. Uma risada leve, uma melodia que me fazia esquecer do frio e da escuridão à minha volta. Mas, ao mesmo tempo, lembrava-me do meu lugar, sempre do lado de fora, sempre à distância.
Meu telefone vibrou no banco ao lado, uma mensagem que eu ignorei. Nada mais importava quando eu estava ali, naquela rua, naquela posição, com Valência no meu campo de visão.
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Entre Desconhecidos
RomanceDimitri, um estudante de artes com um segredo sombrio, nutre uma obsessão silenciosa por Valência há anos. A vida dele gira em torno dela, sua musa inalcançável, até o dia em que uma inesperada proposta lhe dá a chance de se aproximar. Mas aquilo q...